[1] Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA/ Campus Marabá Industrial. http://orcid.org/0000-0001-6411-4048
RESUMO:
O presente artigo objetiva analisar as imagens de mulher que se forjam no âmbito da poesia de Renailda Cazumbá. Elegemos, como objeto, o poema "Nunca Soube", publicado na Revista Organismo em 2018. Tanto a poeta Renailda, quanto a Revista Organismo figuram às margens do grande mercado editorial e, consequentemente, do cânone literário e, daí advém o poder subversivo e contestador da autora e da Revista. Pode-se notar que a poesia de Cazumbá engendra um construto feminino descompromissado com os ditames e os paradigmas sociais que alijaram, durante muito, as mulheres das decisões políticas, coletivas e individuais. Tais ditames gestaram, clandestinamente, uma série de insurreições, de insurgências e de um novo perfil de mulher insubmisso e implicado com as desconstruções e com as desnaturalizações das narrativas que, secularmente, povoaram o nosso modo de ser, de estar e de perceber o mundo. Fundamentam nosso estudo os pressupostos teóricos cunhados por Butler (2017), Foucault (2001), Hooks (1995), Leite (2016) e Tedeschi (2008).
PALAVRAS-CHAVE: Poesia Brasileira Contemporânea, Autoria Feminina, Desconstrução.
ABSTRACT:
This article aims to analyze the images of women that are forged in the context of Renailda Cazumbá's poetry. We chose, as object, the poem "Nunca Soube"[I never knew it], published in Organismo in 2018. Both the poet Renailda and the Revista Organismo are at the fringe of the great publishing market and, consequently, of the literary canon, and hence the subversive and contestant side of the author and the journal. It can be noted that the poetry of Cazumbá engenders an uncompromising feminine configuration uncompromised with the dictates and social paradigms that have long kept women away from political, collective and individual decisions. These dictates clandestinely created a series of insurrections, insurgencies and a new profile of insubmisive woman engaged with the deconstruction and denaturalization of the narratives that secularly influenced in our ways of being and perceiving the world. We have based our study on Butler (2017), Foucault (2001), Hooks (1995), Leite (2016) and Tedeschi (2008).
KEYWORDS: Contemporary Brazilian Poetry, Female Authorship, Deconstruction.
Convite poético
A poesia acordou de manhã.
Fez cara de desentendida
E jeito de inexistente. Me acordou. Rezou por mim.
Disse às pessoas que sou fraca
Que sofro
Que me perdi, no mundo.
Depois mexeu em meus livros.
– Não sei quem a ordenou!
Leu, leu, leu.
Olhou para mim
E disse, com seu temperamento difícil
E seus métodos indóceis:
– Me amas. Entrega-te. Que eu já estou aqui há muito (Cazumbá, 2014, p. 103).
O poema intitulado “Convite Poético”, de autoria da poeta Renailda Cazumbá, nos serve de epígrafe e exibe um caráter metapoético bastante acentuado: trata-se de uma voz lírica feminina atravessada pela presença do poético. No texto, a poesia, afetada pela figura da prosopopeia, acorda, faz cara de desentendida, reza pela voz poemática e diz a todos que a eu-lírico é uma pessoa fraca, que sofre e que se perdeu no mundo. O ato de se perder no mundo, aqui, é bastante revelador, uma vez que a expressão, comumente, aponta para indivíduos e subjetividades desenraizados ou insubmissos. No poema, a saída para o “se encontrar” está intimamente relacionada com a aceitação da presença poética.
Uma poesia que lê, que mexe nos livros, que tem o temperamento difícil e métodos indóceis, é uma poesia que se quer de autoria feminina, pois já não pode e não deseja apagar as marcas do enfrentamento, dos embates e da resistência. O estado lírico, por excelência, que interpela a voz capaz de lhe conferir materialidade e nascimento revela, ainda que paradoxalmente, uma atitude de respeito ao pedir que a eu-lírico lhe tenha amor e se ofereça, uma vez que, há muito tempo, ela espera por essa entrega.
Vemos aí, uma das nuances da poesia contemporânea de autoria afro-feminina: a reflexão metalinguística. No entanto, uma multiplicidade de temas e de motivos circunda essa lírica de mulher e se ergue, revelando a força produtiva e desconcertante – porque subversiva – de tais construtos e justificando o fato da autoria feminina ganhar cada vez mais força e espaço no âmbito da produção literária contemporânea. Embora tais escritas e tais processos criativos transitem na periferia e nas margens do circuito editorial e canônico – a sua força e potência advém exatamente dessa realidade em que se encontram inseridos – é possível e real, que algumas dessas escrituras, ainda que problematicamente, tenham conseguido arrombar as fronteiras dos espaços reservados, tradicionalmente, para os machos-brancos-cis, e ocupado tais lugares, ora se alinhando ao regime, ora sabotando, parodiando e implodindo as estruturas de poder.
A implosão de tais estruturas, ainda que pela força simbólica da presença incômoda e que se desdobra no questionamento e na resistência, faz com que a escrita feminina se depare com o caos, com a descontinuidade, com o fragmentário. Se nutrir, porque igualmente habita, das beiradas, dos meandros e das encostas, fornece à produção literária de mulheres, um poder desestabilizador capaz de rasurar e de tensionar com determinadas modalidades discursivas – inclusive as literárias – que acreditam na univocidade da linguagem e sua implicação sempiterna com uma lógica etnologofalocêntrica.
Trata-se, portanto de uma poesia que exerce um papel de resistência, de “antídoto” elaborado do próprio veneno moderno e contemporâneo que ela bebe e incorpora. Os temas ligados ao feminicídio, ao racismo estrutural, ao estupro, às violências institucionais povoam a literatura feminina contemporânea, não somente como forma de representação das dores e dos venenos a que determinados corpos estão submetidos, mas também como forma de denúncia e de produção de antídotos contra os males que interpelam determinadas subjetividades.
Cabe ressaltar que tomamos, aqui, como objeto de análise, construtos poéticos de uma autora negra e baiana: Renailda Cazumbá, a qual desponta no círculo literário, com publicações em antologias independentes e fora do grande circuito editorial. Renailda Ferreira Cazumbá é poeta, natural da cidade de São Gonçalo dos Campos, no Recôncavo baiano. Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, com atuação na área de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Lidera o LINSP - Grupo de pesquisa em Linguagem, Sociedade e Produção de Discursos. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a literatura, a leitura e as práticas de produção de discursos, atuando na linha de pesquisa “Produções discursivas na perspectiva foucaultiana”. Tem textos poéticos publicados em Profundanças – Antologia Literária e Fotográfica (2014) e na Revista Organismo (2018), cujos textos nos servirão de objeto de análise.
Estamos, pois, diante de uma poeta e intelectual afro-brasileira. De acordo com Bell Hooks (1995), vivemos em uma sociedade fundamentalmente anti-intelectual e complicada para as intelectuais empenhadas e preocupadas com as mais diversas e profundas transformações sociais. Segundo a autora,
nos círculos políticos progressistas, o trabalho dos intelectuais raramente é reconhecido como uma forma de ativismo. Na verdade, expressões mais visíveis de ativismo concreto (como fazer piquetes nas ruas ou viajar para um pais do Terceiro Mundo e outros atos de contestação e resistência) são consideradas mais importantes para a luta revolucionaria que o trabalho mental (Hooks, 1995, p. 464-465).
Bell Hooks, no mesmo estudo, ainda nos diz que essa desvalorização do trabalho intelectual, muitas vezes, torna difícil para indivíduos que vêm de grupos marginalizados considerarem importante o trabalho intelectual, isto é, entendê-lo como uma atividade útil. A autora, evocando Cornel West e o seu ensaio “O Dilema do Intelectual Negro”, assevera que, a opção, de negros e negras, de tornar-se intelectual é um ato de auto-imposta-marginalidade e que resulta num status periférico na e para a comunidade negra.
Sem jamais pensar no trabalho intelectual como de algum modo divorciado da política do cotidiano, Bell Hooks, mas também, Renailda Cazumbá, objeto de nosso estudo, optaram conscientemente em ser intelectuais, pois era esse trabalho que lhes permitia entender a realidade e o mundo em sua volta. Essa experiência, em Hooks, forneceu a base de sua compreensão de que a vida intelectual não precisa nos separar da comunidade, mas, antes, pode capacitar-nos a participar mais plenamente da vida da família e da comunidade. Essa postura, ratificou, desde o início, o que lideranças negras do século XIX compreendiam bem — “o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas que passariam de objeto a sujeito que descolonizariam e libertariam suas mentes” (Hooks, 1995, p.466).
No entanto, cabe ressaltar que estamos falando de autoria feminina negra, logo, as problemáticas de gênero, não podem ser negligenciadas. Sobre essa questão – a intelectualidade negra – Hooks (1995) afirma que quando eruditos negros escrevem sobre a vida intelectual negra, em geral, só focalizam as vidas e obras de homens. Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras, críticas e teóricas culturais das comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mentes quase sempre invoca imagens masculinas.
Dessa forma, amparados nas reflexões propostas por Hooks, podemos observar que Renailda rompe com o discurso hegemônico, que também se encontra presente nos estudos étnico-raciais, quando privilegia, em muitos momentos, o discurso masculino, em detrimento da epistemologia feminina. Por isso, se mostra implicada e comprometida com as mais diversas margens e marcas irreversíveis: mulher, negra, poeta e intelectual, que se engaja e se forja nas mais diversas formas de ativismo concreto, como por exemplo, “fazer piquetes nas ruas”, mas que escolheu, maiormente, inserir-se, na luta revolucionária, por meio do trabalho intelectual.
Como poderemos observar, através dos poemas, o trabalho intelectual, que se engendra por meio da escrita criativa e do trabalho poético, aponta, ora para uma desconstrução, ora para um tensionamento/questionamento dos papeis e das imagens de mulher secularmente construídas pela tradição e pelas instituições. Trata-se de poemas que não se encontram completamente alinhados à ideia de “imaginação imperiosa”, proposta por Hugo Friedrich (1978), mas que reelabora essa imaginação com imagens e ponderações tocadas pela presença do logocentrismo e que resultam numa reflexão crítica, acerca das diversas problemáticas que atravessam e que interpelam a mulher e, mais precisamente, a mulher negra, nos mais distintos lugares sociais. Vejamos:
Nunca soube
A mulher sábia edifica a sua casa, a louca a desmorona.
Sabida queria ser para não falar na cama
Não soltar gemidos em gozos que só a mim contentam
Aos quatro cantos esconderia minha garra de loba
Minha febre de doida, minha gula de fêmea
Rezaria preces ao amanhecer
Atenta à bendita obrigação dos castigos e bênçãos
Cantigas de ninar e preces ao Senhor
Não me fazem melhor
Melhor nunca serei santa nem que eu queira suavizar
A fúria infernal dos meus desejos e agonias
Agora as caçadas na noite pilheriam com a minha solidão
E eu uivo de pena e de comodismo
Gemo na cama de enfermos
A dor das doidas e também das santas.
Eu queria alcançar o céu das santas
Mas só os infernos das loucas
Me recebem em suas chamas adiadas
Mais "macha" e com meu pau de mil metros
A louca de um dia para a noite não se faz santa
Mas as santas escondem
A sua louca paixão pelos machos (e fêmeas)
As santas desdenham a coragem da louca,
Escondem as suas armas
E as amo mais que tudo, santas, santas, santas
Foi por acaso que me tornei puta
E puta permaneço no esplendor do dia.
Minha carne queima mais que o fogo do inferno
E não sei onde fechar o cadeado do meu clitóris
Mas a sábia edifica a sua casa
E a louca constrói castelos de areia
A louca lança palavras ao vento
Canta nos banheiros e exige seu gozo certo
Eu que nunca soube rezar
Que nunca soube aguardar
Que nunca soube calar
Que nunca soube abrandar
Que nunca soube crer
Que nunca soube chorar
Que nunca soube ... ser menos. (Cazumbá, 2018, p. 12-13).
O poema de Renailda Cazumbá, intitulado “Nunca soube”, já encena, desde o título, uma desconstrução: um eu-lírico feminino, mas que nunca soube ocupar, ou, quem sabe, performatizar a partir de um lugar que se costumou reservar para a mulher. O “nunca soube” que nomeia o poema, não aponta para um não-saber próprio da ignorância ou da inocência, mas um “não-saber” que revela o não-querer, uma indisposição e, em última instância, uma falta de aptidão para assumir os lugares do rezar, do aguardar e do calar, a que o patriarcalismo relegou o feminino.
O primeiro verso do poema, aponta para um verso bíblico, mas só, para em seguida, desconstruí-lo. Se, para a tradição judaico-cristã, cabe à mulher sábia o papel de edificar a sua casa, a eu-lírico aponta para uma outra possibilidade: a da mulher louca fazer com que o seu próprio lar se desmorone. A “mulher louca”, aqui, é a metonímia de todo corpo indócil de mulher, que não aprendeu ou que desaprendeu a chorar, a abrandar, a crer e a rezar. Esse corpo feminino dissidente, aqui nomeado como “louca”, capaz de implodir a própria casa, é um corpo questionador das normas e das convenções que naturalizam a ideia da desigualdade de gênero e da inferioridade do feminino.
O poema constrói uma imagem de mulher que vai se formando, nas brechas, entre o saber e o não-saber, mas trata-se de um não conhecimento que aponta para uma modalidade epistemológica que se constitui, como já afirmamos, nos meandros, nas encostas e nas beiradas. Nos chama a atenção, no segundo verso, que esse eu-lírico feminino desejava ser “sabida” o suficiente para não falar na cama e não soltar gemidos em gozo que só a ela contenta. Os gemidos e os balbucios na cama, em meio ao prazer, parecem apontar para uma entrega feminina que a “desarma” frente aos perigos do gozo e a coloca, sem imunidade, numa situação inofensiva diante do “predador”.
A sociedade patriarcal, modulada por ditames machistas, sexistas, misóginos e que colocam a mulher numa zona de tensão e de vigília ininterruptas, faz com que a voz lírica intente esconder sua garra de loba, sua febre de doida e sua gula de fêmea. Dessa forma, os gemidos e as explosões do gozo são substituídos por “preces ao amanhecer” e atenção “à bendita obrigação dos castigos e bênçãos”.
Mais uma vez, em “Cantigas de ninar e preces ao Senhor/ não me fazem melhor”, a eu-lírico feminino questiona e, em última instância, desestabiliza a ideia da existência de um lugar pré-determinado: o de procriar, rezar e ocupar os lugares sociais privados, como é o caso do lar. A voz lírica instaura um contraponto producente entre o que historicamente foi relegado à mulher, e como a obediência a esses ditames tornaria a mulher santa ou pecadora, e a necessidade de romper com esses protótipos seculares e estigmatizantes.
Ao refletir acerca dos espaços sociais das mulheres, Tedeschi (2008, p.101) afirma que há “lugares e funções que se constroem pelo casamento e reforçam o ideal de lar e de maternidade – como papeis historicamente construídos e legitimados pela moral cristã” e que, durante muito tempo, definiram a identidade feminina e as limitaram ao espaço privado. Para Tedeschi (2008), uma das instituições que mais se empenhou na construção de um “paradigma do feminino” foi a Igreja Católica. Para ele, a igreja criou dois protótipos de autorrepresentação da mulher na tradição cristã: “Eva pecadora” e “Maria Virtuosa”. Tais instâncias antagônicas são utilizadas, pelo cristianismo, de acordo com o autor, para representar, mas também violentar, todo o universo feminino.
Ao afirmar que “nunca serei santa nem que eu queira suavizar/ A fúria infernal dos meus desejos e agonias”, a voz lírica parece aceitar o lugar de desajustada, em relação às engrenagens que movimentam a sociedade e que constroem “os quadrados” em que cada indivíduo e cada subjetividade deverão se enquadrar, sob pena de exclusão e de silenciamento, ainda mais severos, que, não raro, resultam na morte simbólica, mas também factual, envoltas e enoveladas em uma coreografia social que não tolera uma pisada fora da linha.
O corpo feminino e a fúria infernal de seus desejos e agonias são constante e ininterruptamente, vigiados e punidos, como diria Michel Foucault (2001). O autor, ao analisar o sistema de governo monárquico predominante na Europa, entre o fim do século XVII e o princípio do século XVIII, afirma que, naquele contexto, o poder imperante do estado apagava qualquer forma de expressão dos direitos básicos intrínsecos à própria existência da pessoa enquanto sujeito de direitos e que aos desviantes poderiam ser imputados desde mutilações de cabeças seguidas de facadas lançadas ao peito, enforcamento seguido de banho em caldeira de água fervente, e todas as formas possíveis e imagináveis de tortura e manifestação do poder sobre os corpos dos condenados.
As mulheres, desde sempre, experimentaram as formas mais brutais de cerceamento de direitos, de apagamento, de silenciamento e de morte, não somente na Idade Média e sua caça às bruxas que resultava nos horrores de corpos femininos sendo consumidos pela fogueira. Em diferentes épocas e contextos, vemos as barbáries a que as mulheres sempre foram submetidas; e se pensarmos em mulheres negras, como é o caso das poetas em questão, a situação se torna ainda mais brutal.
Dois casos ilustram e bordam de sangue o que acabamos de afirmar. Recorremos, aqui, ao caso de Cláudia Silva Ferreira, que teve o corpo arrastado por 350 metros por um carro da Polícia Militar, no dia 16 de março de 2014, no Morro da Congonha, em Madureira, no Subúrbio do Rio de Janeiro. Após ser baleada, Claudia foi colocada por PMs no porta-malas para ser levada para o Hospital Carlos Chagas, onde chegou sem vida, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. No meio do caminho, no entanto, a mala abriu, ela ficou presa por um pedaço de roupa ao carro, e teve parte do corpo dilacerada ao ser arrastada pelo asfalto.
O segundo caso que nos interpela é a da vereadora e ativista dos direitos humanos, Marielle Franco. Executada com três tiros na cabeça e um no pescoço, em 14 de março de 2018, junto a seu motorista Anderson Gomes. De acordo com uma reportagem publicada pelo G1, em março de 2018, e assinada por Gabriel Barreira, em pouco mais de um ano, Marielle escreveu e registrou dezesseis projetos de lei, dois dos quais foram aprovados: um que regulou o ofício de mototáxi e a Lei das Casas de Parto, visando a construção desses espaços cujo objetivo era fornecer e garantir a realização de partos normais. Suas proposições legislativas buscavam garantir apoio aos direitos das mulheres, à população LGBT, aos negros e moradores de favelas. Em agosto de 2017, os vereadores cariocas rejeitaram, por 19 a 17, sua proposta para incluir o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário municipal.
Assim como a eu-lírico do poema, Cláudia e Marielle gemeram “na cama dos enfermos”, reservada exclusivamente para os corpos, notadamente negros, mas que aprisiona todo e qualquer corpo de mulher, seja ela doida ou santa, como podemos observar nos versos: “Gemo na cama de enfermos / A dor das doidas e também das santas”. Por esse motivo, concordamos com Judith Butler (2017, p. 8-9), quando a estudiosa e feminista, ao falar dos “problemas de mulher”, afirma que “ser mulher é uma indisposição natural” e “por mais séria que seja a medicalização dos corpos das mulheres, o termo também é risível, e rir das categorias sérias é indispensável para o feminismo”. Butler, no mesmo estudo, assevera que a fronteira e a superfície dos corpos são politicamente construídas e que se faz necessário romper as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua ressignificação subversiva e sua proliferação para além da estrutura binária e do regime da heterossexualidade compulsória, do qual falaremos mais adiante.
Nos chamam a atenção os versos, que revelam uma inaptidão à mudança de estereótipo, a qual resultaria numa alteração do lugar no qual a eu-lírico está inserida: “Eu queria alcançar o céu das santas / Mas só os infernos das loucas / Me recebem em suas chamas adiadas”. Há, aqui, mais uma vez, uma dicotomia baseada na tradição judaico-cristã que revela o maniqueísmo fundante de tais crenças: a existência do céu – reservado à Maria e às santas – e o inferno – reservado a Eva e às loucas, o que revela, mais uma vez, uma diferença entre os corpos de mulher. Ao corpo branco, ainda que de mulher, são concedidos determinados privilégios e concessões, os quais o corpo negro não conhece.
Isso se deve, pois, de acordo com Leite (2016), a que os nossos corpos são educados através de processos e pedagogias distintas: na família, na escola, nos ambientes e situações por onde transitamos e que vão nos atravessando enquanto experiência. Essas pedagogias, principalmente, as de cunho judaico-cristãs, tecem um construto, radicado no simbólico e no discursivo, com vistas à construção de um “modelo de mulher” e que não abarca o corpo trans, o corpo indígena ou o corpo negro, uma vez que foram educados por meio de epistemes e pedagogias distintas do protótipo eurocentrado.
Por outro lado, o desejo da eu-lírico, de alcançar o céu das santas, não nos convence por completo, uma vez que, desde o princípio, essa dicção que se ergue no poema se reconhece como uma existência poética marcada pelo desajustamento e pela insubmissão capaz de fazer desmoronar a própria casa. Os versos da poeta Grada Kilomba (2019, s/p) nos acendem uma luz e apontam um caminho em meio a essa encruzilhada interpretativa. Vejamos: “Estou rodeada por espaços brancos onde, dificilmente, eu posso adentrar e permanecer”. Dessa forma, o céu – lócus “reservado” e insistentemente reclamado pela narrativa judaico-cristã – é forjado como um espaço privado das santas e, consequentemente, das brancas, educadas e escolhidas para casar e edificar a sua casa. Por conseguinte, às doidas, porque negras e vistas como um corpo para entretenimento e como objeto capaz de saciar os desejos dos machos brancos, só resta o inferno. Essa inadequação aos moldes patriarcais, que retira a eu-lírico do céu das santas e a coloca no vale das loucas se revela nos versos: “Mais “macha” e com meu pau de mil metros” e engendra uma imagem fantasmagórica, carnavalesca e desconstrutora: uma mulher-macha com um pau de mil metros.
Além de toda a potência metafórica que a imagem forja, as redes conceituais que se bifurcam, a partir dela, apontam para a necessidade de rasurar as imagens que caracterizam a figura do opressor – o ser macho e possuir um pau (ainda que não seja de mil metros). É relevante notar que a eu-lírico não se denomina como um macho, porque poderia incorrer no risco de se tornar aquilo que se busca desestabilizar, mas como uma macha, uma terceira via, uma rota de fuga entre o binarismo que classifica as pessoas em duas categorias: ou homem ou mulher.
O regime da heterossexualidade compulsória, a que estamos todos submetidos, e que Judith Butler (2017) se refere, é tensionado e contestado, no bojo do poema, quando a eu-lírico afirma: “A louca de um dia para a noite não se faz santa / Mas as santas escondem / A sua louca paixão pelos machos (e fêmeas)”. Os versos revelam que, de acordo com a ótica da eu-lírico, enquanto as doidas podem viver a plenitude de seus desejos por machos e fêmeas, as santas, devido às convenções sociais que as fazem santas, não se permitem e escondem a louca paixão que nutrem por homens e por mulheres.
Aqui, é borrado o regime da heterossexualidade compulsória, ou, ao menos, aponta-se para o lado oposto da encruzilhada: se, concretamente, devido à potência simbólica de tal regime, não podemos, “de um dia para a noite”, desmoroná-lo, por outro lado, é imperioso, urgente e uma questão de sanidade, estruturar as linhas de fuga que constroem lugares coletivos de pertença, de embate e que resguardam a voz, o corpo, o sangue e a vida de nós-mesmos e de nós-os-outros.
O poema constrói, reiteradamente, dois lugares equidistantes e duas imagens distintas de mulher, mas não irreconciliáveis, uma vez que há um flerte ininterrupto e, quiçá, paradoxal entre as duas instâncias: as doidas já foram santas um dia, e aceitam tal condição irreversível, e as santas escondem, camuflam a presença da doida que há nelas. De acordo com a voz lírica, “as santas desdenham a coragem da louca”, mas, “escondem as suas armas” por conta das conveniências, dos contratos e dos protocolos sociais. A eu-lírico, declaradamente doida, se vale da ironia quando afirma: “e as amo mais que tudo, santas, santas, santas”. A repetição tripla do adjetivo, no nosso entender, reflete, no âmbito do cristianismo, a santíssima Trindade que outorga, ao Deus judaico-cristão, a característica de ser três vezes santo. A ironia reside exatamente aí, a mulher que se vale das estratégias simbólicas de santificação, não são apenas santas, mas três vezes santas.
É com resignação que a eu-lírico aceita o lugar dissonante que para ela foi reservado. É interessante notar que, pela primeira vez, no poema, o adjetivo oposto a santa, deixa de ser doida e passa a ser puta, como se observa nos versos a seguir: “Foi por acaso que me tornei puta / E puta permaneço no esplendor do dia”. Trata-se de aceitar uma condição que se deu, nas palavras da voz lírica, por acaso e de assumir tal condição, saindo das penumbras da vergonha e da exclusão e permanecendo puta à luz do dia.
Devido às condições de doida, porque puta, esse corpo poético de mulher, que também é carne “queima mais que o fogo do inferno” porque é atalhado, ao mesmo tempo em que alimenta as mais diversas paixões por machos e por fêmeas e as fontes de gozo e de prazer que daí são advindas. Mais uma vez, podemos observar que se trata de uma condição provocada por uma ruptura irreversível, pois, se já não era possível se tornar santa “de um dia para a noite”, tal possibilidade se torna ainda menos provável, uma vez que é a própria eu-lírico quem afirma: “E não sei onde fechar o cadeado do meu clitóris”. Com o cadeado do clitóris aberto, torna-se cada vez mais impossível adentrar no céu das santas dos clitóris fechados.
“Mas a sábia edifica a sua casa / E a louca constrói castelos de areia”, essa é a sina da mulher que ousa subverter os padrões e ditames pré-determinados pela sociedade fundada nos ideais do patriarcado e que odeia, porque misógina, as mulheres. Se se tratar de uma mulher-doida-louca-puta, os dispositivos de controle engendrados pela sociedade se encarregam de empurrar a subversiva para os lugares de exclusão, de silenciamento e, de como já havíamos afirmado, de morte. Os castelos de areia, a despeito da casa edificada, construídos pela louca são sinal inconteste de insubmissão, de ousadia e de insurgência. O castelo de areia, arquitetado para o desmoronamento, é metáfora de um lar em que a mulher não mais aceita o lugar do esperar, do cozinhar, do rezar, do não-ver, do não-ouvir e do não-falar. Toda casa que abriga uma mulher independente econômica, financeira e afetivamente é uma casa fadada, felizmente, a ser um castelo de areia, em iminência de desmoronar, ao primeiro sinal de cerceamento de sua subjetividade, do estrangulamento de sua individualidade e de questionamento de suas vontades, de seus desejos, de suas paixões e de sua plenitude, enfim.
A louca que lança palavras ao vento, que canta nos banheiros e que exige seu gozo certo, amedronta às masculinidades sempre fragilizadas, seja pela presença da homossexualidade, ou da feminilidade independente, orgulhosa e senhora de si. Nota-se, no poema, que não se trata de uma mulher que deseja, mas de uma mulher que exige o gozo e o faz, dentre outros motivos, porque nunca esteve a serviço da reprodução machista dos estereótipos acerca da mulher, mas que também nunca soube rezar, nunca soube aguardar, nunca soube calar, nunca soube abrandar, nunca soube crer, nunca soube chorar e que nunca soube... ser menos.
Inclusive, “ser menos” sempre foi a marca e o signo imputados ao feminino. Durante muito tempo, as mulheres não podiam gozar, não podiam se separar, não podiam trabalhar, não podiam votar. As mulheres sempre foram consideradas frágeis, carentes de proteção e salvaguarda, em primeira instância, do pai e, em última instância, do marido. Os discursos inferiorizantes sempre atravessaram a história das mulheres e de acordo com Tedeschi (2008, p. 123) “Esses discursos recorrentes exerceram influência decisiva na elaboração de códigos, leis e normas de conduta, justificando a situação de inferioridade em que o sexo feminino foi colocado [...]”. Assim, a disparidade de gênero consecutivamente se revestiu de um caráter universal, erguido e renovado numa teia de significações produzida por múltiplos discursos, como a filosofia, a religião, a educação, o direito, perpetuando-se por meio da história e legitimando-se sob seu tempo.
Dessa forma, as imagens de mulher que nos interpelam no âmbito da poesia de Renailda Cazumbá são calcadas numa representação feminina, moduladas pela ideia do “nunca soube”. Trata-se de uma construção imagética que nunca soube ser aquilo que lhe disseram que deveria ser: comportada, resignada, santa. No poema que nos serviu de análise, mas também em outros de Cazumbá, desfilam mulheres decididas a desconstruir e a desestabilizar as narrativas seculares que sempre reclamaram para a si, um modelo de feminino a ser seguido. Tais construções discursivas sempre estiveram comprometidas com as construções das identidades e com a interpretação masculina de mundo.
Durante muito tempo, interpretar o mundo pela ótica do masculino era alternativa mais cômoda e menos conflituosa, porque se impunha, dadas as suas bases, quase de maneira natural. “Cabe então a nós, homens e mulheres, contribuir para desnaturalizar essa história” (Tedeschi, 2008, p.40). Eis, aqui, a nossa contribuição.
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