O ENCONTRO ENTRE O OUTRO E O MESMO NA LITERATURA DE VIAGENS

LA RENCONTRE ENTRE LE MÊME ET L'AUTRE DANS LA LITTÉRATURE DE VOYAGE

Maria Elizabeth Chaves de Mello[1]

[1] Professora da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq. https://orcid.org/0000-0003-3440-4989


RESUMO:

Ao ler os relatos de viajantes franceses sobre o Brasil, constatamos que o Brasil é um mito paradoxal para os franceses, a partir do Renascimento, servindo como base de crítica à moral da civilização, pelo fato de oferecer o espetáculo da superioridade do homem natural, o mito de um mundo novo a ser preservado, de um mundo primitivo que deve ser civilizado... E onde o imaginário tem o seu lugar... Ao mesmo tempo, é o lugar da crueldade, da ferocidade, do canibalismo. O imaginário desenvolvido pela visão ambígua dos viajantes europeus sobre o país será responsável pela imagem que os brasileiros fazem de si mesmos, ainda hoje. E que estão na base de muitos temas nas obras literárias, teatrais e cinematográficas, ainda hoje. Daí a importância de ler e estudar esses textos na História da Literatura, para uma melhor compreensão da formação da nacionalidade brasileira, através do olhar do outro.

PALAVRAS-CHAVE: literatura de viagem, o mesmo/o outro, França/Brasil


RÉSUMÉ:

En lisant les récits des voyageurs français sur le Brésil, on constate que le Brésil est un mythe paradoxal pour les Français, depuis la Renaissance, servant de base à la critique de la morale de la civilisation, car il offre le spectacle de la supériorité de l'homme naturel, le mythe d'un nouveau monde à préserver, d'un monde primitif à civiliser ... Et où l'imagination a sa place ... En même temps, c'est le lieu de la cruauté, de la férocité, du cannibalisme. L'imaginaire développé par la vision ambigüe des voyageurs européens sur le pays sera responsable de l'image que les Brésiliens se font d'eux-mêmes, même aujourd'hui. Et ils sous-tendent de nombreux thèmes dans les œuvres littéraires, théâtrales et cinématographiques, même aujourd'hui. D'où l'importance de lire et d'étudier ces textes dans l'histoire de la littérature, pour une meilleure compréhension de la formation de la nationalité brésilienne, à travers les yeux de l'autre.

MOTS-CLÉS: littérature de voyage, France / Brésil


Escrever sobre narratividade é um grande desafio. Quando falamos em narrativa, supõe-se que se saiba o que é “narrar”. A mão é importante na narrativa. Não seria a relação entre o narrador e sua matéria uma relação artesanal? Segundo Walter Benjamin (1994, p. 210), o  narrador sabe dar conselhos que servem para muitos casos, pois dispõe da experiência. Seu dom é poder contar alguma coisa e contá-la por inteiro. Por outro lado, a memória é a mais épica de todas as faculdades.

Mas, se estivermos nos referindo ao relato de viagem, a situação se complica, pois, além da memória, surge a questão do ficcional, do imaginário e do fictício. É preciso, então, estabelecer algumas considerações. Numa narrativa, é necessária uma organização temporal, uma ordem na desordem do diverso, irregular e acidental. Essa ordem seria concomitante ao ato de escrever. No entanto, ao fazermos um texto sobre a narratividade de relatos de viajantes franceses no Brasil, isso não seria, também, nos inserirmos na narratividade? Aliás, como um texto em prosa, crítico ou literário, se relaciona com a narrativa? Estará sempre ligado a ela, de uma maneira ou de outra? Monsieur Jourdain, personagem de Molière na peça Le bourgeois gentilhomme, descobre, a um dado momento, que fala em prosa, sem ter disso consciência. Não estaríamos nós, ao escrevermos um texto sobre viajantes franceses no Brasil, adotando a mesma atitude do personagem, usando a narrativa sem o saber?

Numa narrativa, é necessária uma organização temporal, uma ordem na desordem do diverso, irregular e acidental. Essa ordem seria concomitante ao ato de escrever. No entanto, ao fazermos um texto sobre a narratividade de relatos de viajantes franceses no Brasil, isso não significaria, também, nos inserirmos na narratividade? Aliás, como um texto em prosa, crítico ou literário, se relaciona com a narrativa? Estará sempre ligado a ela, de uma maneira ou de outra? O termo “literatura de viagem” suscita ambiguidade, dando ao relato um status de gênero, que merece ser problematizado. O escritor viajante é, antes de tudo, um jornalista em missão, afirma François Moureau (cf. 2005, p. 12).  Por outro lado, é a viagem que faz o escritor.  Mas não basta ser um escritor e viajar, para sentir a necessidade de passar da situação de espectador para a de narrador. O que dizer, então, sobre a narrativa de viagens? Ela surge junto com a imprensa e trata, inicialmente, da única coisa que valia a pena ser narrada, aos olhos renascentistas, pós-medievais: as peregrinações, as cruzadas, as viagens à Terra Santa. Marco Polo, mais ou menos na mesma época, impregna os seus relatos de fictício e imaginário, seduzindo os europeus para as viagens a novas terras e o encontro com novos povos. Há quem diga que ele nem sequer esteve na China, o que torna mais interessante, ainda, a sua narrativa, pois a liberta da memória, passando a inseri-la nos domínios do fictício e imaginário.  A partir dos Descobrimentos, os jesuítas foram os primeiros a divulgarem os relatos de suas missões, ad majorem Dei gloriam. O velho mundo é sacudido nas suas certezas, surge a Utopia de Thomas Morus, em 1516, dando conta das mudanças que ocorriam na concepção dos europeus, diante da descoberta do outro. Durante muito tempo, o relato de viagem estará ligado à ficção utópica...

Assim, no século XVI, dois franceses escrevem sobre o Brasil: André Thevet e Jean de Léry. A baía de Guanabara, berço do sonho de Villegagnon, torna-se, segundo os relatos dos dois viajantes, cenário de guerras de religião, importadas da Europa, e de lutas sangrentas com os índios canibais. Segundo Maria Helena Rouanet, há três aspectos fundamentais nos escritos desses viajantes: ver, descrição completa e pormenorizada de tudo o que se viu e publicação, visando preservar a memória (cf. Rouanet, 1991, p.82). Esses três aspectos serão fundamentais na literatura de viagem sobre o Brasil, na França, sendo responsáveis pela dualidade do olhar francês sobre o país, que ora vê a natureza e o povo nativo com um sinal positivo, ora com pessimismo e pavor.

Lendo esses textos, podemos afirmar que, no século XVI, os projetos de França Equinocial e França Antártica, a fascinação pelo pau-brasil e pelos costumes indígenas, fazem do Brasil o « avesso da Europa ». O Brasil é e tem tudo o que a Europa não é, ou tudo o que ela não tem. Diante dos índios brasileiros levados a Rouen e exibidos na corte como selvagens e exóticos, Montaigne se inspira e escreve uma das páginas mais importantes sobre o homem natural, o ensaio Os canibais, em que ele questiona o epíteto de « selvagens », dado a esses índios, e afirma sua superioridade sobre o europeu, dito « civilizado ». Estavam lançadas as bases das teorias sobre a bondade natural do homem, o bon sauvage.  

No final do século XVIII, a Europa tornara-se maníaca por viagens, pelo encontro com o outro, alargando a cada dia o seu objeto de interesse, estudo e reflexão. Ora, entre essas novas possibilidades que se ofereciam ao Velho Mundo, a América era um dos lugares preferidos para a difusão das luzes, o lugar de teste e prática das doutrinas sobre o homem primitivo e a sociedade civilizada. Assim, a França organiza missões científicas, que, sob pretexto de explorações do solo, do clima, da latitude e longitude, do estudo dos povos, da fauna e da flora, vão muito mais longe, no sentido de buscarem garantir a irradiação das ideias do Iluminismo. Cumpre lembrar que esses cientistas viajavam todos, ou quase todos, em missão do governo, com o compromisso de publicarem os seus relatos, de retorno à metrópole. Estes textos, escritos na volta à França, reforçavam a utopia do homem natural,  representado pelo indígena.

Em 1558, André Thevet publica Les singularitez de la France Antarctique – as primeiras impressões sobre a tentativa francesa de colonização do Brasil. Padre católico, Thevet acusa os protestantes do fracasso da empreitada. Anos mais tarde, para responder ao autor, o protestante Jean de Léry escreve l’Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dit Amérique, uma das obras primas da literatura de viagem francesa no século XVI. Nela, Léry narra a sua viagem de cerca de um ano na França Antártica, na Baía de Guanabara, cujos habitantes, os tupinambás, são descritos, nos seus costumes e modos de vida. A Histoire d'un voyage só é publicada vinte anos após o retorno do seu autor à França, tempo mais do que suficiente para os franceses terem sido obrigados a deixar o Brasil, e para as guerras de religião explodirem em toda parte, na Europa. A apresentação que Léry faz dos índios interessa, entre outros elementos, pela questão da narrativa, pois ele apresenta, logo no início, a necessidade de por ordem na desordem da memória. Afinal, o texto é publicado vinte anos depois do seu retorno à França:

Em primeiro lugar, portanto (para que, começando pelo principal, eu possa continuar na ordem), os selvagens da América, habitantes da terra do Brasil, chamados de Tupinambás, com os quais vivi e frequentei familiarmente durante cerca de um ano, não sendo nem maiores, nem mais gordos, nem menores do que  somos na Europa, também não têm o corpo mais monstruoso, nem prodigioso, em relação a nós :  mas são mais fortes, robustos e repletos, mais bem dispostos, menos sujeitos à doença :  quase não há  mancos, cegos,  deficientes, ou  prejudicados, entre eles. Muitos chegam até a idade de cem ou oitenta anos (pois sabem muito bem guardar e contar sua idade pela lua), sendo poucos os que, na velhice, têm os cabelos brancos ou grisalhos. Esses fatos provam, não apenas o bom ar e boa temperatura de seu país, o qual, como já afirmei, aliás, não possui geleiras nem grandes frios, mas bosques, ervas e campos sempre verdejantes ; mas também (como todos bebem, realmente, na fonte de Juvêncio) provam o pouco cuidado e  preocupação que eles têm com as coisas deste mundo. (Lery, 1994, p. 210-211)

Após o fracasso da colonização no Brasil, durante muito tempo, a França voltará o seu olhar sobre o hemisfério norte. É o tempo dos aventureiros na América do Norte, da colonização na América Central e na África. O Brasil é constantemente saqueado por piratas franceses e ingleses, mas só retomará um lugar no imaginário francês durante o século das luzes.

De fato, no final do século XVIII, a Europa tornara-se maníaca pelas viagens, pelo encontro com o outro, alargando a cada dia o seu objeto de interesse, estudo e reflexão. Ora, entre essas novas possibilidades que se ofereciam ao Velho Mundo, a América era um dos lugares preferidos para a difusão das luzes, o lugar de teste e prática das doutrinas sobre o homem primitivo e a sociedade civilizada. Assim, a França lança-se às missões científicas, que, sob pretexto de explorações do solo, do clima, da latitude e longitude, do estudo dos povos, da fauna e da flora, vão muito mais longe, no sentido de buscarem garantir a irradiação das ideias do Iluminismo. Cumpre lembrar que esses cientistas viajavam todos, ou quase todos, em missão do governo, com o compromisso de publicarem os seus relatos, de retorno à metrópole. Estes textos, escritos na volta à França, reforçavam a utopia do homem natural, representado pelo indígena. Mas o mito do bon sauvage é ambíguo, servindo tanto a religiosos quanto a ateus: aos primeiros, como base de crítica à moral da civilização do século XVIII, apresentando-lhe o selvagem como isento de todos os vícios e defeitos dessa sociedade; por sua vez, os cientistas livres pensadores, não religiosos, servem-se também dos índios para provarem a superioridade do homem natural, baseada no instinto e na razão. Acrescente-se a isso um outro elemento, pois alguns viajantes falam de seres repulsivos, antropófagos e ferozes e teremos o selvagem ora bom, ora mau, dando respaldo a agnósticos e religiosos, e o Brasil torna-se, ao mesmo tempo, um paraíso natural a ser preservado e um mundo primitivo que deve ser ‘civilizado’.

Se os primeiros viajantes a escreverem textos sobre o Brasil eram franceses, religiosos (Thevet, católico; Léry, protestante), narrando a cena da tentativa de colonização francesa do país segundo o ponto de vista de suas respectivas crenças, será também um outro francês, Charles-Marie de la Condamine, cientista e escritor, que reintroduzirá o Brasil na cena da literatura mítica, quando a região havia caído no esquecimento, após o fracasso da tentativa de Villegagnon. Em abril de 1735, La Condamine é encarregado, pela Académie des Sciences, de organizar uma expedição ao Peru, para medir o comprimento de um arco de meridiano perto do equador. Ele desce o Amazonas (é o primeiro cientista a fazê-lo) e chega até Caiena. Em relação à ciência, essa viagem é importante, pois permite a primeira descrição do quinino, assim como a descoberta da borracha e do curare. Na sua volta a Paris, em 1745, La Condamine leva mais de duzentos objetos de história natural. Esse viajante nos fornece, no seu relato, muitos elementos de reflexão, ao falar dos índios amazonenses:

Creio ter reconhecido em todos uma mesma característica, cuja base seria a insensibilidade. Deixo em aberto se devemos honrá-la com o nome de apatia, ou aviltá-la, com o de estupidez. Provavelmente, ela nasce do número reduzido de suas ideias, que não vão muito além de suas necessidades. Glutões até a voracidade, quando têm com o que se satifazer ; sóbrios, quando a necessidade a isso os obriga, chegando até a ficarem sem nada, parecendo nada desejarem ; pusilânimes e poltrões em excesso, se não forem tomados pela bebedeira ; inimigos do trabalho, indiferentes a qualquer motivo de glória, de honra ou de reconhecimento, ocupados apenas com o objeto presente, e sempre por ele determinados ; sem preocupação com o futuro ; incapazes de previsão  e de reflexão sobre qualquer coisa ; quando nada os perturba, entregam-se a uma alegria pueril, manifestada por saltos e gargalhadas imoderadas, sem sentido e sem objetivo ; passam a vida sem pensar e envelhecem  sem sair da infância, da qual conservam todos os defeitos. (La Condamine, 1745, p. 52-53)

Esse encontro com os índios, que ele descreve como apáticos e estúpidos, sem vontade, pusilânimes e covardes, nos remete às ideias de Montesquieu sobre o efeito do clima nos habitantes das regiões quentes. Autêntico leitor e herdeiro da teoria dos climas do philosophe, La Condamine interesssa-se pela questão dos escravos, pela mistura das raças, pelos costumes nas cidades e povoados onde pernoita, sempre com um olhar minado pelo preconceito, pelas leituras prévias que fizera, fornecendo material rico para estudar aquele momento no Brasil, mas, também, e principalmente, para refletirmos sobre o olhar estrangeiro, herdado do pensamento iluminista francês, sobre a nação que se formava. Esta passagem nos fornece muito material de discussão, já que se trata de um olhar negativo, diferente do bon sauvage, a que a literatura de viagens nos acostumara, desde o texto citado de Jean de Léry. Trata-se aqui do selvagem, habitante de clima quente, com as características que Montesquieu descrevia, para esses homens: a moleza, a malandragem, a pouca aptidão para o trabalho serão o seu traço mais forte.

Com a citação acima, torna-se clara a confirmação da hipótese inicial, ou seja, da ambiguidade do olhar europeu sobre as terras americanas, ora vistas como um lugar paradisíaco, ora como o lugar da indolência e da crueldade, ora como o lugar ideal para a difusão das luzes (tema presente em todos esses autores viajantes).

No entanto, poucas páginas antes, no seu relato, La Condamine trata de um Brasil do rio e da floresta, da Amazônia, onde o viajante procura, sem encontrá-las, as mulheres guerreiras da mitologia. A narrativa interessa-se pouco pela população, debruçando-se mais sobre a mineralogia, a fauna e a flora, num relato pretensamente científico, fonte eventual de lucros coloniais. O homem entra como parte do cenário majestoso e é o último, na ordem de elementos descobertos:

Um novo mundo, afastado de todo comércio humano, num mar de água doce, no meio de um labirinto de lagos, rios e canais que penetram, em todos os sentidos, numa floresta imensa que só se alcança através das águas. Eu descobria novas plantas, novos animais, novos homens. (La Condamine, 1745, p. 47) 

Assim, ao longo dos séculos XVIII e XIX, muitos viajantes escrevem sobre o Brasil: La Condamine, Ferdinand Denis, Saint-Hilaire, Francis de Castelnau, Adèle Toussaint-Samson e muitos outros falam de um paraíso natural, o lugar dos selvagens, da ambição, da crueldade etc. Escolhemos, para estudar um pouco mais atentamente, dois desses autores, considerando que os seus textos são bons exemplos desse paradoxo – sociedade má/natureza boa (leitores de Rousseau ?) : Francis de Castelnau,  cientista que esteve durante quatro anos no país, a trabalho, e Adèle Toussaint-Samson, escritora que  viveu no Rio de Janeiro durante doze anos. Francis de Castelnau ficou no país de   1843 a 1847. Sua narrativa de viagem contém seis volumes. O texto descreve uma parte do Brasil, bem como a sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, seus costumes e hábitos, assim como a relação dos europeus com os índios e escravos, a condição da mulher, a cidade e o campo, a floresta, os animais, o diálogo ou a falta dele entre a Europa e o Brasil,  o imperador, a aristocracia urbana e rural etc. Considerando a vastidão de estudos a que isso dá ensejo, assim como o desconhecimento do autor sobre o Brasil, a leitura da obra é preciosa para o estudo que realizamos sobre as relações França/Brasil.

Percebe-se que a narrativa de viagem apropria-se do ritmo e das técnicas da narrativa histórica, para recriar a cor local, através de um olhar testemunha, subjetivo. O relato da viagem de Francis de Castelnau sobre o Brasil e a América do Sul apresenta-nos a oportunidade de refletir sobre até que ponto um texto pretensamente científico pode nos levar a pensar no que é literatura, questão que está na base de todas as nossas pesquisas. O entusiasmo de Castelnau pela América do Sul revela-se em muitos momentos, mas é sempre em relação à paisagem natural, ao aspecto primitivo do Brasil e da América do Sul:

Poucos lugares se oferecem à imaginação com tanto prestígio quanto a América do Sul; enquanto a parte setentrional desse continente perde a cada dia seu caráter primitivo, para ser substituída pelas maravilhas da indústria moderna,  a parte do Sul, ao contrário, conserva ainda hoje o selo da natureza virgem: nada de estradas de ferro, nem de canais, nem, muitas vezes, estrada nenhuma, mas, em toda parte, admiráveis florestas virgens, rios, cuja extensão é sem limites, montanhas cujos cumes gelados se perdem além das nuvens, nações selvagens, para as quais até o nome da Europa é desconhecido.[2]

Castelnau chega a estabelecer uma hierarquia entre os diferentes países, dando um lugar privilegiado ao Brasil, em relação aos outros países sul americanos, como podemos observar, quando ele entra na Bolívia:

Assim que entramos na Bolívia, percebemos logo a diferença que existe entre essa região e o Brasil, em termos de configuração física. A raça portuguesa apoderou-se, na América, do lugar mais admirável do mundo, que a natureza parece ter prazer em culminar com todos os seus benefícios. A repartição das águas na vasta superfície desse império é absolutamente notável; magníficos rios e inumeráveis braços d´água percorrem em todas as direções suas florestas e campos, levando essa fertilidade que acompanha com tanto prestígio o nome do Brasil, cuja lembrança nos vem à imaginação cercada de seu brilhante cortejo de florestas virgens, povoadas por pássaros com ricas plumagens e resplandecendo com todo o brilho do sol dos trópicos. (CASTELNAU, 1851, vol. 3, p. 205)

No entanto, ao retratar a sociedade brasileira, ele o faz com as cores mais sombrias, como podemos ver, em descrições de cenas da vida social:

..foi com uma viva contrariedade que recebemos o convite oficial para fazer parte de uma procissão que, no dia de Santo Antônio, devia percorrer a cidade. Nos países tropicais, é uso celebrar tais festas após o por do sol; mas, em Mato Grosso, por uma estranha exceção, elas acontecem quando esse astro lança os seus raios mais ardentes. Com efeito, ao amanhecer, fomos despertados por um barulho horrível de sinos, tambores, trombetas, fogos etc, acompanhamento indispensável de todas as festas brasileiras; logo vieram nos buscar para irmos almoçar no palácio e, de lá, à capela de Santo Antonio. Esta é pequena, mas, pelo menos, desprovida dessa quantidade de enfeites de mau gosto que,  normalmente, se acumulam nas igrejas desse país... (CASTELNAU, 1851, vol. 3, p. 69-70)

Como podemos constatar, o autor critica até as igrejas barrocas, reclamando da quantidade de enfeites que elas apresentam! Tudo o que se refere à cultura brasileira o desgosta ou entedia. Na verdade, haveria muito a dizer sobre Castelnau, que, além disso, abala as fronteiras entre o relato documental e a ficção, usando propositalmente o imaginário na memória, ao afirmar, desde o início da obra, que ele perdeu uma grande quantidade de suas anotações de viagem.

Mas é também muito instigante apresentar aqui uma mulher francesa, Adèle Toussaint-Samson. Cumpre observar que ela se distingue de outras mulheres viajantes que escrevem sobre o Brasil, pois, ao chegar ao Rio de Janeiro, já escrevera livros na França. No seu relato sobre o Brasil, propõe relatar a vida quotidiana do século XIX, durante os doze anos passados no país, onde ela veio « faire fortune, ou faire l´Amérique ». O livro foi lançado em Paris em 1883, com o título de Une parisienne au Brésil e traduzido no Brasil no mesmo ano.  Gostaríamos de aprofundar o estudo da diferença desse olhar feminino, no intuito de questionarmos se há, efetivamente, mudanças de visão na narrativa de uma mulher. Adèle termina o seu prefácio pedindo o julgamento do público leitor:

Cabe ao público me dar a sua opinião, e julgar, em última instância, se tive razão de tirar esse livro do fundo da minha escrivaninha, onde o havia relegado, e esperar que esses quadros dos costumes brasileiros, absolutamente verdadeiros, poderão ter algum interesse para os meus compatriotas. É o meu desejo, e peço também aos brasileiros que os acolham bem; pois, embora eles possam não acreditar, eles foram escritos por uma pena imparcial, mas amiga. (Toussaint-Samson, 1883, p. XI)

Essa passagem do livro já nos apresenta muitos elementos de reflexão, pois a autora, de volta à França há muitos anos, ignora o trabalho do imaginário associado à memória, que estaria implícito no seu relato. As expressões « absolument vraies » e a « plume impartiale » trazem uma conotação positivista, muito adequada ao momento de publicação do texto. Antes de ser publicado em livro, o relato surge em forma de novela, simultaneamente no Jornal do Comércio, no Brasil e no Figaro, em  Paris, onde nascera  em  1826,  filha caçula  de Joseph-Isidore Samson, ator, professor de teatro  e autor de peças de teatro de sucesso. Ela fora educada em um meio progressista e liberal, em contato com pessoas de teatro, das letras e do mundo artístico em geral. Daí a sua perplexidade diante dos temas e da futilidade das conversas nos salões do Rio de Janeiro:

Eu, que acabava de sair do meio artístico de Paris, e estava habituada a ouvir debaterem sobre todas as questões sociais, políticas, literárias e artísticas nos salões do meu pai, fiquei muito espantada, na minha chegada ao Rio, com essa falta absoluta de prática de conversa. (Toussaint-Samson, 1883, p. 194)

Embora arrogante, a observação justifica-se pela sua historia de vida e oferece-nos uma visão da sociedade brasileira daquele momento. Habituada à sofisticação do meio artístico parisiense, ela fica impressionada com a reclusão das mulheres brasileiras, que raramente saem de casa e não sabem nem mesmo manter uma conversa nas festas, por falta de prática. Antes de embarcar para o Brasil, com a idade de vinte anos, Adèle se casara, na França, com um dançarino de teatro, Jules Toussaint. Embora fosse filho de francês e com nacionalidade francesa, ele nascera no Brasil. Depois da revolução de 1848, a vida em Paris se tornara difícil para os profissionais do meio artístico, que necessitavam de um público espectador. Após o nascimento do primeiro filho, o casal viaja para o Brasil com o intuito de faire l’Amérique, a convite de um tio de  Jules Toussaint. Naquela época, viviam no Rio de Janeiro muitos franceses, artistas, alfaiates, cabelereiros, professores de francês e de outras disciplinas, lecionando inclusive o piano e a dança.

Quando o casal desembarcou no Brasil (entre 1849 e 1850), Adèle  já havia publicado dois textos na França: Essais: d’après une note manuscrite e um  Livre de Poésie de Mlle. Adèle Samson, nos quais podemos constatar seu talento para a escrita. O casal encontrou no Rio uma cidade devastada e aterrorizada pela febre amarela, que fazia grandes estragos. Assim que chegaram, ambos foram contaminados pela doença. No entanto, a partir de 1851, o nome de Jules Toussaint já figura no Almanaque Laemmeert, como professor de dança e, dois anos após, encontra-se ali também o nome de   Madame Toussaint, como professora de francês e de italiano, no mesmo endereço que o marido. Algum tempo depois, Jules torna-se professor de dança da família imperial, nomeado por D. Pedro II. Para Adèle, mulher obrigada a sair na rua sozinha para trabalhar, francesa, a vida era bem mais difícil, conforme ela nos deixa entrever:

Como as brasileiras não saíam nunca sozinhas nas ruas, nessa época, só se via, na cidade, francesas ou inglesas, que, só pelo fato de saírem sozinhas, viam-se expostas a muitas aventuras: “É uma Madame”, diziam sorrindo os brasileiros, o que significava uma francesa e subentendia uma petite dame; porque a exportação de nossas petites dames para o estrangeiro não é uma das partes menos importantes de nosso comércio.

Quanto às brasileiras, enclausuradas por seus esposos no fundo das casas, em meio aos filhos e escravas, só saindo acompanhadas para irem à missa ou às procissões, não se pode crer que fossem, por isso, mais virtuosas do que outras. Simplesmente, elas assim o parecem.  (Toussaint-Samson, 1883, p. 164).

Nessas passagens do texto, vale observar a reclusão a que eram condenadas as brasileiras, impedidas de saírem na rua. Uma reclusão imposta, artificial, hipócrita. Vítima de preconceitos, por ser francesa e por sair sozinha nas ruas, diferente das mulheres do país, a vida de Adèle é difícil no Rio de Janeiro. Segundo ela, a importação de prostitutas europeias era muito grande, naquele momento no Brasil, o que fazia com que toda mulher que chegasse do Velho Mundo fosse vista com desprezo e desconfiança.  Principalmente se saísse sozinha para trabalhar. Sofrendo com esse preconceito, Adèle apresenta a contrapartida dessa situação, no olhar sobre as negras escravas, cuja nudez a choca e escandaliza. Temos, então, uma ambiguidade interessante, pois a vítima dos preconceitos revela-se, por sua vez, preconceituosa. O paradoxo consiste na situação de uma francesa, educada no meio artístico e intelectual parisiense, sofisticada e liberal, ser vista com desprezo, considerada uma cortesã pela sociedade brasileira, pelo fato de ser estrangeira, de trabalhar e sair na rua. No entanto, ela mesma, diante do outro, vê as negras com suas vestimentas e costumes diferentes dos europeus e demonstra o mesmo preconceito que os brasileiros, que a tratam de « Madame »: “Nada existe de mais depravado do que essas negras minas: são elas que pervertem e envenenam a juventude do Rio de Janeiro (Toussaint-Samson, 1883, p. 47).”

As negras são impudicas, ardentes e assustadoras, do mesmo modo que ela é considerada « cortesã » pelo fato de ser diferente. Apesar da educação liberal que recebera, Adèle revela-se pudica, quando se refere à nudez, à exibição do corpo, tanto das negras, quanto das mulheres brancas europeias. Mas o que é mais assustador é a escravidão, descrita com crueza, quando ela conta sua estadia em uma fazenda do estado do Rio:

Foi ali que as misérias da escravidão surgiram para mim em toda a sua hediondez. Negras cobertas de farrapos, outras seminuas, tendo como única vestimenta um lenço amarrado atrás do pescoço e sob os seios, que escondia apenas a garganta, e uma saia de índia, cujos rasgões deixavam ver seu pobre corpo descarnado; negros de olhar selvagem ou abobalhado vieram se colocar de joelhos no piso da varanda. (Toussaint-Samson, 1883, p.104)

À medida que o texto avança, percebe-se uma mudança no olhar da francesa sobre a mulher negra. De repente, a nudez não está mais relacionada à falta de pudor, mas à miséria da escravidão, o que a espanta mais no Brasil, naquele momento. Assim, o olhar outrora arrogante da escritora europeia fica cheio de solidariedade diante das vítimas de um sistema que ela recusa e critica. Desde o relato de sua chegada no Brasil, a crítica da escravidão está presente na voz da narradora. Oriunda de Paris, então o centro da « civilização », e de uma família de artistas, Adèle possuía um olhar avançado e moderno sobre a escravidão, participando de discussões sobre inúmeras questões, inconcebíveis até entre as mulheres europeias de meios menos evoluídos.  Isso faz com que ela interfira no apartamento de uma vizinha, que surrava as escravas por tudo e por nada. Ela narra essas interferências com muito bom humor, e ridiculariza os resultados: a vizinha passa a amordaçar as escravas, para que os seus gritos não cheguem à vizinhança.  Haveria muitos outros episódios a contar, percebe-se que o olhar feminino é mais rigoroso do que o masculino, pois Adèle denuncia a escravidão de maneira muito mais aguda e crítica do que a maioria dos viajantes do sexo masculino, desgostando-se e sofrendo, diante das cenas de violência e crueldade com os escravos. A sociedade brasileira é apresentada por ela de maneira bem negativa: selvagem, despudorada, vulgar.

No entanto, ao voltar à França, Adèle reproduz as atitudes clichés dos viajantes, quando valoriza a natureza, que ela vai eleger como o máximo de valor positivo no Brasil:

Quantas vezes senti falta desses imensos horizontes que alargam a alma e o pensamento; meus banhos de mar à luz do luar na praia fosforecente; minhas corridas a cavalo na montanha; aquela baía esplêndida, para a qual davam as janelas da minha casa, e onde, à noite, barcas de pescadores  passavam agitando suas tochas sobre as ondas.... Prefiro os países onde a vida é maior, onde o ar e o sol não são contados, onde não se corta uma fruta em quatro, onde se toma banho todos os dias, e onde, por quase nada, pode-se comprar , não um pedacinho de terra, mas léguas de terreno.... (Toussaint-Samson, 1883, p. 216-217)

Ao ler esses viajantes, constatamos o que já suspeitávamos desde o início do nosso trabalho: que o Brasil é um mito paradoxal para os franceses, na modernidade, servindo como base de crítica à moral da civilização, pelo fato de oferecer o espetáculo da superioridade do homem natural. O mito de um mundo novo a ser preservado, um mundo primitivo que deve ser civilizado... E onde o imaginário tem o seu lugar... Esse imaginário surgido dessa visão ambígua dos viajantes europeus será responsável pela imagem que os brasileiros fazem de si mesmos, ainda hoje. E que estão na base de muitos temas nas obras literárias, teatrais e cinematográficas do Brasil, ainda hoje.  Daí a importância de ler e estudar esses textos na História da Literatura, para uma melhor compreensão da formação da nacionalidade brasileira, através do olhar do outro.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOUGAINVILLE, Louis-Antoine . Voyage autour du monde. Paris: La Découverte, 2007.

CASTELNAU, Francis de . Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para- exécutée par ordre du gouvernement français, pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. Paris : Chez P. Bertrand, Libraire-Editeur, 1850. 6 vv.

CHARTIER, Roger . Ecouter les morts avec les yeux. Paris:Collège de France, Fayard, 2008.

_____ . La « Nouvelle Histoire Culturelle » existe-t-elle? Ostifildern: Jan Thorbecke Verlag, 2006.

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Notas

[2] Bulletin de la Société de géographie, 1847, tome 8, n° 43-48