“DEVAGAROSA MULHER COBRA”: HERBERTO HELDER, UMA POÉTICA DA TRADUÇÃO
Palavras-chave:
tradução, poesia contemporânea, artes verbais indígenasResumo
Os trabalhos de tradução realizados pelo poeta português Herberto Helder são bem conhecidos. Desta prática, destaco como as mais inquietantes aquelas que se debruçaram sobre culturas não ocidentais. A falta de referência completa de fontes, salvo raríssimas exceções, faz com que essa atividade tradutória torne-se realmente misteriosa, podendo revestir de dúvidas a existência real desses cantos/poemas, o que nos levaria a imaginá-los, talvez, como criações do próprio autor. De fato, Herberto Helder não os incluiu, por vezes, entre as suas publicações, como ocorre na Poesia toda (1981), onde já aparece o seu primeiro livro de traduções chamado O bebedor nocturno e em outra edição da Poesia toda (1990) que inclui novamente O bebedor nocturno e o segundo livro de traduções intitulado As magias? Tais traduções podem ser caracterizadas como um amplo trabalho de pesquisa realizado pelo poeta, o que lhe permite coletar os cantos em outras fontes, provavelmente compilações de especialistas, a partir das quais ele traduz, e em seguida apaga-lhes os rastros. As possíveis relações entre o ato de tradução e o de criação, como também as variadas temáticas que atravessam esses cantos põem em evidência aspectos como a oralidade, a musicalidade, as distorções sintáticas e a produção de línguas poéticas marcadas pela experiência da alteridade. De todo modo, o que parece indubitável é que há, em Herberto Helder, uma poética da tradução, e essa poética redunda num anacronismo em função do qual o antigo e o novo coexistem, misturam-se, transmitem um ao outro determinados traços específicos, revelando um processo de mão dupla de apropriações e empréstimos. A fim de esclarecer algumas inquietações relativas a essas traduções tratarei aqui de dois casos bem distintos: a tradução de “A criação da lua”, dos Huni Kuin, e de “Mulher cobra negra”, dos Gondos da Índia Central.