[1] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0002-4041-8335
RESUMO:
O presente artigo investiga as tensões estéticas e políticas no Brasil na década de 1940 e começo da seguinte por meio do trabalho e da trajetória de João Cabral de Melo Neto. A relação entre escritores e políticos com aquele momento da história do país é reveladora sobre a formação do campo literário brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Campo literário brasileiro, João Cabral de Melo Neto, Modernismo brasileiro, Crítica brasileira, Cultura brasileira.
ABSTRACT:
This article aims to discuss the political and aesthetic tensions in the 1940s, and early 1950s, through João Cabral de Melo Neto's work and his life trajectory during those years. The relationship between such key Brazilian writers and politicians and their time reveals the formation of the Brazilian literary field.
KEYWORDS: Brazilian literary field, João Cabral de Melo Neto, Brazilian Modernism; Brazilian Criticism, Brazilian Culture.
O jovem cônsul e poeta João Cabral de Melo Neto sente na pele, em 1952, as reverberações das tensões políticas da guerra fria, quando é removido ao Brasil do seu segundo posto diplomático em Londres, para responder a um inquérito em que é acusado de formar uma célula comunista com mais quatro diplomatas. No começo de 1953, é colocado em disponibilidade não remunerada pelo presidente Getúlio Vargas enquanto acompanha os desdobramentos do processo. Antes de voltar a esse momento do retorno do poeta ao país, tentarei assinalar alguns indícios das tensões estéticas e políticas em Cabral e no campo literário brasileiro ainda na década de 1940 para pensar como e de que maneira um intransigente “poeta puro”, que começou sua produção literária em 1942 influenciado, ou siderado mesmo, por Válery e Mallarmé, tornou-se um poeta defensor do engajamento político em um momento em que sua principal referência no Brasil, Carlos Drummond de Andrade, assumia uma direção em boa medida contrária. Por meio da recuperação da trajetória desses escritores e das relações entre estética e política é possível, ainda que dentro da limitação de um artigo, recompor alguns aspectos decisivos relacionados ao processo de autonomização relativa do campo literário nesse momento.
O primeiro livro de João Cabral, Pedra do sono (1942), ataca diretamente, além de Válery e Mallarmé, problemas que Carlos Drummond de Andrade desenvolveu em seus livros da década de 1930, principalmente Brejo das Almas (1934). Nesse momento da estreia de Cabral, o poeta mineiro já havia escrito o livro Sentimento do mundo (1940) que marca, embora de maneira específica, um engajamento político que irá dar o timbre da sua produção nos livros posteriores: Rosa do povo (1945) e, em alguma medida, Novos poemas (1948). Cabral, no entanto, neste momento, primeira metade da década de 1940, pouca atenção dá à lírica participante do poeta mineiro.
Sentimento do mundo de Drummond ao que parece foi bem recebido por um público restrito e circulou, segundo depoimentos de época, quase clandestinamente. Teve uma pequena tiragem de 150 exemplares e outra clandestina de fato que, ainda segundo depoimentos, foi passado de mão em mão[2]. O relançamento do livro, de qualquer maneira, acontece em meados de 1942 dentro da coletânea Poesias, incorporando os poemas de José (1942), pelo prestigiado editor José Olympio[3] que declarava já no final da década de 1930 lançar edições de 5 a 10 mil exemplares, o que, segundo Hallewell (2012, p. 463), parece exagerado, embora marque uma diferença significativa em relação à edição de 150 exemplares “fora do mercado” e outra “clandestina” e a ampla circulação que a prestigiada editora possibilitou aproximadamente dois anos depois ainda dentro do contexto repressivo do Estado Novo.
A maneira como João Cabral reelabora e dialoga com a lírica de Drummond e os depoimentos e documentos de época, cartas e jornais principalmente, não acusam essa modulação da voz dos poemas de Drummond a partir de Sentimento do mundo, ou, em outra direção, acusam uma forte influência de Brejo das almas. Os escritos iniciais do pernambucano procuram avançar tendo como base problemas colocados pela produção de Drummond dos anos 1930. A politização de João Cabral aconteceu, com efeito, na Espanha no seu primeiro posto diplomático em Barcelona entre 1947 e 1950. Ao que parece, em direção distinta ao processo de “desmarxização da inteligência” nos Estados Unidos que, segundo Serge Guilbaut[4], levou à consolidação de um espaço nesse país onde foi possível constituir um elo especificamente nacional com as vanguardas modernistas por meio do expressionismo abstrato. No Brasil e na América Latina não aconteceu propriamente um processo de “desmarxização” da inteligência[5] que possibilitou um espaço para a abstração, geométrica no caso brasileiro, do final dos anos 1940 e da década de 1950, embora certa neutralização política, como procurarei argumentar aqui, tenha contribuído para essa “nova” ideia de moderno vinculada ao processo de institucionalização do modernismo, algo ainda relativamente pouco estudado no Brasil nessa chave comparativa com os Estados Unidos.
Esse quadro, de qualquer maneira, irá se transformar no país e ganhará colorações mais imediatamente políticas no final da mesma década de 1950 e, principalmente, nos anos 1960, momento em que a imagem de poeta engajado de João Cabral se consolida pela consagração do autor em uma dimensão pública ampliada – ou para além do campo literário – que ele obteve com as apresentações de "Morte e vida severina" em 1966 no Brasil e em algumas cidades da Europa[6].
Na Espanha, do seu posto consular em Barcelona, João Cabral comenta em uma carta de outubro de 1948 a Carlos Drummond de Andrade sua “adesão ao comunismo” que estava arquitetando anunciar por meio de um poema, que pode ser um esboço de O cão sem plumas, seu trabalho posterior que marca de fato uma nova e original posição política e estética:
Gostaria de lhe falar de um poema que estou arquitetando e que seria uma espécie de explicação de minha adesão ao comunismo. Como essa palavra é explosiva, chamarei a coisa, plagiando o José de Alencar: Como e por que sou romancista. Não há dúvida de os que sabem que eu nunca escrevi um romance ficarão intrigados (Apud Süssekind, 2001, p. 228)
A politização de Cabral aconteceu, como dito, em um momento em que curiosamente Drummond se voltava a uma espécie de “esteticismo”, ou “formalismo”[7], inflexão bastante particular em relação ao seu “lirismo de participação” anterior. Essa expressão marcada entre aspas, já conhecida com algumas variantes no começo da década de 1940 e provavelmente antes, foi cunhada dessa forma específica ainda de maneira tateante pelo jovem Antonio Candido em uma crítica na Revista Clima, nº 16, em novembro de 1944 ao elogiar positivamente um livro do poeta Bueno de Rivera em que o crítico percebe “com prazer [que o] livro [de Bueno de Rivera] coloca o problema do lirismo de participação (à falta de melhor nome, e provisoriamente), graças ainda, me parece, à influência de seu coestaduano Drummond” (Candido, 2002, p. 152). O jovem crítico vai usar esse ponto, a participação ou o engajamento, como um critério de valor que terá, no seu polo oposto, a “poesia pura”, que ele começa a criticar duramente neste momento, meados da década de 1940. Pouco tempo depois, João Cabral será para Candido o exemplo privilegiado dessa "poesia pura", voltaremos a isso.
Cabral, para dar uma medida mais concreta da importância de Drummond na sua formação – o da década de 1930, de Brejo da almas principalmente, como dito –, dedicou ao autor mineiro seu primeiro livro, Pedra do Sono (1942), realizou seu segundo trabalho de fôlego, os Os três mal amados (1943), a partir de Quadrilha, poema de Drummond que é citado na abertura, e dedicou a ele O engenheiro (1945), que tem ainda um poema em sua homenagem – ou, em resumo, tudo o que escreveu até Psicologia da composição (1947), que o autor termina um ano antes do anúncio sobre a sua “adesão ao comunismo” ao amigo mineiro e, naquele momento, seu padrinho de casamento.
O poeta pernambucano mudou-se para o Rio de Janeiro em 1942 e estreitou a relação com Drummond[8] a ponto deste, em 1946, como dito, se tornar seu padrinho de casamento. Em 1945, Cabral ingressou na carreira diplomática e, posteriormente, passou de 1947 a 1950 como cônsul-geral em Barcelona e depois em Londres[9]. O pernambucano envia Psicologia da composição (1947) – livro impresso pelo próprio autor em sua gráfica caseira em Barcelona – para Drummond que responde com animação, sublinhando o que considerou central: um rigor formal extremo e, principalmente, uma aposta técnica. Essa aposta ecoa, ao que parece, uma posição que defendeu Mário de Andrade, importante liderança do modernismo brasileiro[10], do final dos anos 1930 até sua morte no começo de 1945:
A verdade, João, é que v. continua presente em conversas e pensamentos. Ultimamente, então, com o “Anfion” e a “Antiode”, a presença é mais viva, e ficamos por aqui considerando que v. está abrindo um caminho para a nossa poesia empacada diante de modelos já gastos. Deu-me uma grande alegria o diabo do seu livro, tão rigoroso, de uma pureza tão feroz [...] insisto, acho que sua poesia está adquirindo um valor didático (nada de confusão quanto a esta palavra), um caráter de prova límpida, de exemplo, que há de ser muito proveitoso para os rapazes desorientados de cá. Bem sei que você não pretende provar nada, mas por isso mesmo sua poesia prova. É de uma qualidade artística evidente. E por mais individual que seja a sua solução para o impasse geral de nossa poesia, ela é um tipo de solução e sobretudo convida ao esforço e a pesquisa (Süssekind, 2001, p. 225).
Até o tom de Drummond é similar ao que Mario de Andrade usou, entre outros lugares, no começo dos anos 1940 para elogiar o empenho e a profissionalização técnica dos críticos paulistas e da “escola de São Paulo”, entre eles Antonio Candido, em um conhecido artigo do lider modernista, Elegia de abril, que foi lançado na primeira edição da Revista Clima, em 1941. Publicação essa elaborada por esses mesmos jovens críticos ligados à recém fundada Universidade de São Paulo:
E por isso não me desagrada a modesta consciência técnica com que a escola de São Paulo se afirma em sua macia lentidão, na pintura como nas ciências sociais, ajuntando pedra sobre pedra, amiga das afirmações bem baseadas, mas amorosas de pesquisar do que de concluir (Andrade, 1978, p. 186)
Nesse conhecido escrito, Mário de Andrade procurou estabelecer para o intelectual – e artista – uma posição em alguma medida engajada socialmente, embora não partidária, privilegiando uma concepção técnica que procura estabelecer e defender naquele momento:
Mas se o intelectual for um verdadeiro técnico de sua inteligência, ele não será jamais um conformista. Simplesmente porque sua verdade pessoal será irreprimível. Ele não terá nem mesmo esse conformismo “de partido”, tão propagado em nossos dias. E se o aceita, deixa imediatamente de ser um intelectual para se transformar num político de ação. Ora, como atividade, o intelectual, por definição, não é um ser político. Ele é mesmo, por excelência, o out-law, e tira talvez sua maior fecundidade justo dessa imposição irremediável de “sua” verdade (Andrade, 1978, p. 193)
Essa postura, em boa medida “desmarxizada”, para usar o termo de Serge Guilbaut, é acompanhada por uma posição estética particular que o líder modernista forjou ao longo da década de 1930 e que é possível reconstituir por meio de aspectos de sua trajetória nesta década. Tanto sua coleção de objetos artísticos como as críticas que escreveu mostram que ele não acompanhou a produção dos pintores modernistas da década de 1920, ou não acompanhou como se esperaria de um líder modernista. Direcionou de maneira progressiva sua atenção para a “terceira via” da pintura social – nem surrealismo, nem “abstracionismo” – tendo Candido Portinari como uma espécie de modelo ideal. No final da década, ele começa essa sua defesa da técnica articulada em boa medida a essa “terceira via”, ou contra os exageros dos experimentalismos modernistas e defendendo a separação entre a esfera artística e a política, ao mesmo tempo em que aposta em certa consciência social do artista e do intelectual – e, o que parece decisivo no seu projeto, afirma uma arte “nacional”, ou se coloca contrário aos “internacionalismos” que em boa medida pautaram ações políticas e artísticas nas primeiras décadas do século XX. Faz isso com tom autocrítico considerando, até, o atrito entre nacional e estrangeiro de parte do modernismo de 1920 no Brasil.
Se por um lado Mário de Andrade estabelecia em seu projeto uma independência política, por outro procurou, diferentemente dos críticos nos Estados Unidos que Guilbaut foca em seu estudo, uma distância dos “radicalismos modernistas” e uma aproximação de certo realismo. O contexto cultural brasileiro, principalmente o de São Paulo, em que Mário de Andrade tinha uma atuação mais direta, estava, como dito, nesse momento da década de 1930, fortemente influenciado por romances neorrealistas:
Os romancistas do sofrido nordeste é que encarnavam para nós a verdadeira modernidade, ampla, generosa, próxima do povo, e ciente de suas responsabilidades sociais, sem os sestros e maneirismos formais de 1922, sepultados em 1929 juntamente com a euforia econômica (Calil & Machado, 1986, p. 23)
Esse depoimento de Décio de Almeida Prado, também um jovem colaborador da Revista Clima e pertencente ao núcleo social de Antonio Candido, dá a medida do “retorno à ordem” do campo modernista e, por outro lado, apresenta uma estratégia artística que tem no seu centro a exposição das desigualdades sociais brasileiras ou as mazelas de um país em que a maioria da população é analfabeta. E que, ainda, buscou predispor no espectador uma forte disposição afetiva nessa direção, como o depoimento evidencia. Essa posição pautou de fato a ação de intelectuais e artistas nos anos 1930, isso até os confrontos no final desta mesma década que começaram a transformar essa pauta e o campo artístico e intelectual no Brasil. O posicionamento de Mário de Andrade em relação à técnica no final dos anos 1930 aponta para uma ambivalente separação das esferas política e estética considerando, no entanto, o "social" e nacional como aspectos centrais, no sentido descrito acima, ou nessa chave que tem Portinari como uma espécie de modelo pelo fato do pintor, ao que parece, conseguir articular a "emoção social" e nacional com a dimensão técnica[11].
A correspondência entre Carlos Drummond e Mário de Andrade mostra que de fato eles discutiam esses problemas. Em uma entrada do diário de Carlos Drummond de 16 de fevereiro de 1945, momento da morte do líder modernista, ele comenta exatamente esse ponto em relação a uma carta de Mário de Andrade do dia 11 do mesmo mês[12]:
Carta de Mário de Andrade, infeliz com o que viu e ouviu no Congresso de Escritores em São Paulo. Concluiu que o destino do escritor há de ser a torre de marfim dentro da qual trabalhe — o que não quer dizer não-me-importismo nem artepurismo. Guardar e meditar suas palavras: "O intelectual, o artista, pela sua natureza, pela sua definição mesma de não conformista, não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político. Ele pensa, meu Deus! e a sua verdade é irrecusável pra ele. Qualquer concessão interessada pra ele, pra sua posição política, o desmoraliza, e qualquer combinação, qualquer concessão o infama. É da sua torre de marfim que ele deve combater, jogar desde o cuspe até o raio de Júpiter, incendiando cidades. Mas da sua torre. Ele pode sair da torre e ir botar uma bomba no Vaticano, na Casa Branca, no Catete, em Meca. Mas sua torre não poderá ter nunca pontes nem subterrâneos." No meio de tantas paixões fáceis e de tanta intelectualidade abdicante, Mário preserva o seu individualismo consciente, que lhe dá mais força para exercer uma ação social que os intelectuais-políticos praticam de mau jeito e sem resultado (Andrade, 2011, p. 38-39)
É possível flagrar esse projeto criador, pensando com Bourdieu[13], de Mário de Andrade funcionando em diversos planos na década de 1940 no Brasil.
Para a discussão proposta aqui, vale acompanhar a relação entre o jovem crítico da Revista Clima, Antonio Candido, e o também jovem poeta João Cabral. Em um rodapé na Folha da Manhã de São Paulo de 13 de junho de 1943, Antonio Candido faz, como declararia mais tarde, a descoberta de João Cabral, apontando de maneira bastante precisa para as contradições e interessantes problemas que traziam os poemas de seu primeiro livro, Pedra do sono (1942). Esses problemas aconteciam, simplificando, em parte pois o autor procurava aproximar surrealismo e construtivismo, tendências que estabeleciam campos separados[14] e em boa medida antagônicos dentro do modernismo naquele momento. O jovem crítico paulista assinala pela primeira vez aspectos que serão decisivos na construção poética do pernambucano como a eliminação de “adornos”, ou de elementos “adjetivos”: “Note-se, então, o valor dominante que os substantivos exprimindo coisas passam a adquirir, ao lado das imagens” (Candido, 2012, p. 139). Certa despoetização, ou certo secamento do lirismo, também centrais nessa poética: “há certos momentos em que temos a impressão de que o sr. Cabral de Melo está despoetizando demais as suas poesias” (Candido, 2012, p. 139). E, um último aspecto, dentre outros – e marcando essa estreia de Cabral como a mais forte que viu “nos últimos tempos” (Candido, 2012, p. 140) – o problema da poesia pura que o crítico comenta dialogando com a epígrafe de Mallarmé, “Solitude, récif, étoile...”, utilizada em Pedra do Sono:
O poeta pernambucano se atirou em busca da poesia pura. Não discuto a sua réussite pessoal, que é das boas. Quanto à poesia pura é que não sei se o seu barco alcançará as estrelas ou se ficará pelos escolhos. Toda pureza implica um aspecto de desumanização. É o problema permanente da pureza ressecando a vida (Candido, 2012, p.140)
Com efeito, a desumanização e o ressecamento do lirismo[15], que são justamente os elementos que conferem potência ao livro, deixaram um tanto perplexo o jovem crítico que procurava se guiar por certo humanismo particular, timbrado pelas pinturas de Portinari, os romances de 1930 e pela crítica aos radicalismos modernistas derivados, em boa medida, do projeto de Mário de Andrade.
Essa perplexidade fica mais evidente e turva a leitura do crítico, que foi de fato aguda em relação a Pedra do sono, nos próximos anos[16]. Esse fato é sintomaticamente apagado das lembranças de Antonio Candido quando ele, em 11 de outubro de 1999, logo após a morte do poeta pernambucano, dá um depoimento para a Folha de São Paulo sobre quando descobriu João Cabral e como acompanhou sua obra. Candido pula, neste depoimento de 1999, da crítica de descoberta do autor escrita em 1943 para o começo da década de 1950, quando ele, como jurado, premia o livro do pernambucano O rio nos festejos do quarto centenário da cidade de São Paulo. Ao longo da década de 1940, no entanto, o jovem crítico assume uma posição em boa medida alinhada à de Mário de Andrade em que certo engajamento literário e social se colocava, embora sem partidarismo ou com alguma separação da esfera política, como critério de valor artístico. Essa posição construiu seu “inimigo” em certo esteticismo, ou mais precisamente na “poesia pura” ou, nos termos de Mário de Andrade, no “artepurismo”, em uma tendência de época que o crítico nomeou com humor, mirando a Geração de 45[17], como “percalços do infinito” em um rodapé de 1946. Curiosamente o exemplo mais bem acabado desse problema que Antonio Candido identificou nessa nova geração foi João Cabral:
Tenho sobre a mesa uma boa porção de livros de poesia, pensando nos quais escrevi essas observações a propósito de silêncio e hermetismo. São valores que encontro em todos eles, ora mais acentuados nuns que noutros, ora mais acentuado um do que outro. A canção da partida da sra. Jacinta Passos, poderia figurar como um caso mínimo; O engenheiro do sr. João Cabral, como um caso máximo. (Candido, 2002, p. 158)
O jovem crítico, depois de ter formulado esse juízo sobre O engenheiro (1945) nesta crítica de 6 de dezembro de 1945, repetiu-o em diversas ocasiões para explicitar o que de pior a nova geração estava fazendo. Em uma crítica de 10 de janeiro de 1946, quando cunha a expressão “Percalços do infinito”, que ele reaproveita em um discurso que faz no I Congresso Paulista de Poesia, Antonio Candido contrasta um poema de Cabral com, não por acaso, outro de Mário de Andrade para explicitar sua tese sobre a reconciliação com o mundo concreto, que, segundo o jovem crítico paulista, os primeiros modernistas procuraram, e certa vocação para a “abstração” e para o “mistério” da nova geração. Coloca um trecho de “fantasma na praia” de O engenheiro para exemplificar seu ponto:
Surpresa do encontro
Com o fantasma
Na praia;
Camisa branca,
Corpo diáfano,
Funções tranquilas
No banho de sol.
E comenta:
Estes versos de João Cabral de Melo Neto são típicos da atual geração, que procura evadir-se do mundo concreto, infundindo nas imagens da vida uma dose máxima de abstração ou mistério, a ponto de transformar o cotidiano em chafariz permanente de milagres (Candido, 2002, p. 165)
O principal representante da nova crítica, primeira geração de uma crítica com formação universitária, apresentou essa praticamente “sentença de morte”, ainda mais por estar em contraste com Mário de Andrade, que havia morrido pouco antes, a um poeta que ele mesmo apontara como promissor em 1943 – eu não sei de ninguém nos últimos tempos que tenha estreado com tantas promessas – em um livro, Pedra do sono, que é muito mais “misterioso” e “abstrato” do que as produções posteriores do pernambucano.
O livro de estreia do pernambucano, de fato, apresenta poemas herméticos que fazem sentido apenas em relação a outros do livro[18]. O engenheiro é um livro muito menos “misterioso” e “abstrato” do que o de 1942, e é acusado muitas vezes por críticos e poetas, o que também é um equívoco, de ser extremamente “racionalista”, “intelectualista”, ou colocado mesmo, pelas gerações posteriores, como a origem de uma linhagem poética racionalista ou construtivista no país – o título, "O engenheiro", leva muitos a esse segundo equívoco que acontece no lado oposto ao do jovem Antonio Candido. Curioso o crítico ter fixado a atenção na abertura deste poema acima, e ter ficado nessa fixação em um livro como “O engenheiro” que possui poemas muito diferentes a O fantasma na praia, que apresentam justamente “o mundo concreto”, embora sem qualquer possibilidade de reconciliação com esse – poemas que problematizam a tensão entre a lírica e o mundo do trabalho – como O funcionário: imediatamente posterior a O fantasma na praia – além de O poema, A lição de poesia, A Carlos Drummond de Andrade, Pequena ode mineral etc. Ou, em outros termos, Antonio Candido anuncia essa “sentença de morte”, em contraste com a imagem de Mário de Andrade, que começava naquele momento a ganhar contornos sagrados, sem entrar de fato na matéria do livro – o que fez, como dito, de maneira aguda em 1943 em relação ao, repetindo, de fato “misterioso” e “abstrato” livro do pernambucano Pedra do sono, que em alguma medida caberia a caracterização chafariz permanente de milagres.
Voltando a Drummond e à redefinição dos limites políticos e estéticos. Em seu diário, no ano de 1947, existe uma longa entrada sobre o 2º Congresso Brasileiro de Escritores que coloca um foco particular na confluência possível ou não entre liberais e comunistas em torno de problemas que apareceram nas pautas de discussão. Em determinado momento Drummond se coloca no debate contrário ao que ele enxergou como uma tentativa de transformar a associação dos escritores, que eles estavam procurando forjar, em algo dirigido pelo partido comunista:
Nenhum de nós queria impedir o direito de os comunistas se manterem organizados em Partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário. A idéia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles, que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da agremiação. (Andrade, 2011, p. 127)
Esse trecho do diário é também citado por Jayme Lúcio Fernandes Ribeiro (Sacramento & Roxo (org.), 2012, p. 171) para exemplificar sua hipótese de que em “1947 a radicalização dos discursos e das práticas foi tomando conta do partido”, o que parece ter contribuído para afastar tanto liberais como outras tendências mais à esquerda – e, levando-se em conta o projeto de Mário de Andrade, todos que estavam nesse campo de atração, o que constituía uma parcela significativa da intelectualidade brasileira daquele momento.
O ponto da divergência no congresso de 1947, no entanto, parece diferente parece mais complexo do que os apontados por Drummond. A Associação Brasileira dos Escritores (ABDE) tinha sido gestada em 1942 na redação de A manhã, "jornal de propriedade do Estado e que a ele servia como órgão oficial [que procurou] organizar o campo e galvanizar a oposição contra Vargas" (Johnson, 1995, p. 178). O objetivo comum nesse momento permitiu a convergência dos intelectuais de diferentes espectros políticos. A dificuldade das negociações com os setores mais à esquerda que Drummond acusa em seu diário começa, em boa medida, com a derrubada do Estado novo e, como dado conjuntural no congresso de 1947, com a participação de Carlos Lacerda, amigo próximo de muitos dessa vertente mais, digamos assim, liberal que procurava estabelecer a Associação Brasileira de Escritores como uma representação "livre", "sem direção sectária", para os profissionais do ramo, para usar os próprios termos de Drummond.
Carlos Lacerda foi uma das figuras de maior destaque no congresso de 1945, segundo Luis Martins[19]. Em 1947, no entanto, Lacerda tinha rompido com o Partido Comunista e apresentara-se como candidato da UDN nas eleições municipais do Rio de Janeiro. Mesmo, segundo ainda Martins, tendo sido eleito vereador, não conseguiu votos para o congresso de 1947 em Belo Horizonte, ficando como suplente. Alguns delegados, no entanto, não puderam participar e Lacerda foi chamado. Isso gerou um impasse, pois os comunistas "declararam que não o aceitariam como congressista; e, caso ele fosse credenciado como tal, estavam dispostos a abandonar o Congresso, em sinal de protesto, o que seria, na prática, condená-lo ao malogro" (Martins, 1983, p. 124). A negociação aqui foi, ao que parece, tensa, e a solução para o conflito: "Carlos Lacerda seria empossado como congressista; mas comprometia-se a participar das sessões apenas como ouvinte, ou seja, com direito a voto, mas sem abrir o bico. Compromisso que ele cumpriu rigorosamente" (Idem, p. 125).
Drummond na sua entrada do diário alude a uma divergência entre liberais e comunistas[20], mas não deixa explícito que já estava no horizonte político divergências entre as alas à esquerda e o udenismo, um liberalismo de caráter conservador e moralista, divergências que estarão nas próximas décadas no centro dos principais embates políticos a partir daquele momento. Carlos Lacerda, com efeito, se tornou o principal representante do udenismo, um liberalismo moralista, que serviu como um polo aglutinador para muitos intelectuais conservadores de caráter autoritário que perderam a legitimidade no campo cultural com a queda do Estado Novo[21].
É provável que a alteração do contexto que gerou a radicalização do discurso do partido comunista que Ribeiro identifica em 1947 tenha contribuído, embora em outra esfera e com outras consequências, para o estreitamento da perspectiva crítica do jovem Antonio Candido de 1943 a 1948 – ou, em outros termos, parece existir certa homologia estrutural entre o campo político e o da crítica “radicalizada”, ou que assumiu “uma posição definida” (Calil & Machado, 1986, p. 58), em um momento em que esses campos começavam a esboçar, ainda de maneira limitada, contornos mais claros no Brasil.
A intervenção mais contrastada, mais radical, do jovem crítico, alinhada ao projeto de Mário de Andrade – elegendo como inimigo o “artepurismo” – e um tanto apressada para constituir um (bom) diagnóstico de época[22], parece ter restringido a sua capacidade crítica em relação a João Cabral. Curiosamente, em 1948, no mesmo ano em que Antonio Candido apresentou sua posição sobre os jovens poetas em uma palestra em um congresso de escritores, em que coloca o poeta pernambucano como o exemplo máximo desse “artipurismo” da nova geração, João Cabral escreve, como vimos, a Drummond e fala sobre sua “adesão ao comunismo”, ou começa a convergir para uma posição, em alguma medida, mais próxima a de Mário de Andrade, mas com uma posição política demarcada.
Um ano antes, em 1947, o pernambucano escreveu Psicologia da composição, livro bastante elogiado por Drummond, como também vimos, por radicalizar justamente a “pureza” – Deu-me uma grande alegria o diabo do seu livro, tão rigoroso, de uma pureza tão feroz – que leva a tensão formal em direção a uma ainda mais intensa construção substantiva, sem adornos, em um diálogo particular com a arquitetura moderna e, particularmente, com Le Corbusier[23], explorando uma vertente modernista ainda pouco trilhada no campo literário brasileiro até aquele momento – que, como dissemos, era combatida por Mario de Andrade como “abstracionista” ou “artepurista”. “Psicologia da composição” faz uma forte crítica a uma lírica muito idealizada, o que acontece por meio de uma autocrítica que, além de atingir os problemas estéticos, coloca em foco na elaboração poética a própria condição social daquela voz lírica. Vale destacar aqui um pequeno trecho da terceira parte do livro denominada “Antiode” para entender no detalhe o que Drummond chamou de “pureza tão feroz” – e a relação crítica e autocrítica de Cabral com uma produção mais idealizada e “misteriosa” que, como bem diagnosticou Candido, de fato acontecia naquele momento. Posição em que o pernambucano afirma justamente certa “pureza” e abstração, ou certa radicalidade moderna de uma (auto)reflexividade radical:
Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer.gerando cogumelos
(raros, fragéis, cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécieextinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro)Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas. (Melo Neto, 2003, p. 98)
Essa abertura de Antiode, que tem como subtítulo “contra a poesia dita profunda”, realiza um balanço da obra do próprio autor e uma crítica aos momentos anteriores do próprio livro, como é possível observar pela sua posição na arquitetura de “Psicologia da composição”[24]– isso promove essa (auto)reflexividade. Cabral desenvolve a justaposição entre flor e fezes, aproximação de opostos, ou do que o senso comum julgaria como tal, e negocia com o estranhamento que isso muito provavelmente gerou naquele contexto. Ao mesmo tempo em que faz o cogumelo brotar na face do leitor, como uma flor particular, até rara – “flor // extinta de flor”. Essa negociação se insinua, como em outros momentos do livro, por correspondências sonoras como na relação entre “EStranha” e “EXtinta”, o que marca a condição rara e negativa – “bolha” – dessa “flor” particular: “flor / não de todo flor, / mas flor, bolha / aberta no maduro”.
O movimento final desse trecho também começa repetindo uma estrutura semelhante a anterior: “Delicado, evitava”. Nessa última parte, o balanço recai sobre a relação da voz com a poesia e continua na direção de expor as “antigas” idealizações e o excesso de delicadeza anterior: “Delicado, evitava / o estrume do poema, / seu caule, seu ovário, / suas intestinações”. O poema, segundo o eu lírico, era pensado – no passado que remete tanto a sua obra anterior como, também, em alguma medida aos dois poemas anteriores do próprio livro, como dito – não como um organismo completo, mas evitando o que soava estrutural – caule – ou muito aparente na linguagem, ou, ainda, eliminando o que revelasse seu processo de feitura, sua gênese ou “criação” – ovário ou intestinações – que acontecia, como dito, em um “antes” da obra e do próprio poema. A voz lírica, então, ataca certa ilusão perspectiva, ou certo “truque”, que apagava as marcas efetivas do trabalho com e na linguagem. João Cabral estabelecia, assim, o poema como um trabalho específico que era ocultado no passado e que agora é explicitado nessa ambivalência desse processo metafórico da flor-fezes que o poema é o desdobramento.
O objetivo da voz no passado era colher essa pureza: “Esperava as puras, / transparentes florações, / nascidas do ar, no ar, / como as brisas”. Essa autocrítica – ou essa (auto)reflexividade radical – recoloca, como dito, de forma mais imediata momentos anteriores, agora situados efetivamente tanto na sua própria obra passada como, de maneira específica, na segunda parte do tríptico: “lance santo ou raro, / tiro nas lebres de vidro / do invisível” (Melo Neto, 2003, p. 95). E reapresenta, ainda, outros momentos do livro “Psicologia da composição” à medida que problematiza uma atitude excessivamente delicada, idealizada e “pura” do artista. A relação entre “pureza” e “impureza” que se desenvolve nesse processo metafórico ganha também referência mais direta expondo o intestino – ou ovário – da sua ruminação poética. Essa clivagem em relação à sua obra passada parece ter uma dimensão mais ampla que esbarra na própria condição social de “fazendeiro do ar” do poeta que começa a se tornar material de elaboração para esse poema e se desdobrará no seu próximo livro, O cão sem plumas (1950).
Psicologia da composição é em boa medida “abstrato”, ou constrói efetivamente um processo de abstração, de metalinguagem, ao passo que se autocritica, e é aí que reside sua “radicalidade moderna”, ou é isso – que já acontecia em alguma medida em “O engenheiro” – que escapa ao jovem e agudo crítico paulista Antonio Candido orientado pelo projeto estético e político de Mário de Andrade. Projeto em boa medida “desmarxizado”, embora em chave diferente a que aconteceu nos Estados Unidos, pois preserva no “assunto” uma perspectiva social, ou um humanismo particular que cobra certa afetividade imediata do observador, mas não propriamente uma dimensão política. Projeto que assegura, no limite, a “torre de marfim”, como Mário de Andrade explica na carta citada acima.
Drummond entendeu essa estratégia estética de João Cabral no livro Psicologia da Composição como algo “tão rigoroso, de uma pureza tão feroz”. Teve uma percepção fina, já que o livro é um desdobramento radical da poética de Cabral em que certos centros de força são de fato purificados na, paradoxalmente, revelação dessa matéria “impura” – o “esteticismo” posterior de Drummond é, em boa medida, devedor disso que ele enxerga em Psicologia da composição, aspecto que, ao que parece, ainda não foi devidamente estudado. Esse livro de 1947 problematiza nessa construção formal – e tematiza em alguns momentos, assim como em “O engenheiro” – um trabalho profissional especificamente literário, contrário à “inspiração” ou ao amadorismo e à “poesia profunda”, o que apontava para uma espécie de delimitação ou de um grau maior de autonomização do campo literário[25], movimento que em outro plano os congressos de escritores da época também parecem indicar. Profissionalização que não trazia, contudo, uma remuneração que permitisse a construção de uma carreira especificamente literária para a grande maioria dos escritores, principalmente para os poetas. Como é sabido, nenhum poeta brasileiro moderno viveu dos livros que produziu, ou exclusivamente do fruto do seu trabalho artístico, o que não mudou significativamente até hoje. Como assinala Hallewell em relação à edição de livros de poemas: “quaisquer que sejam as dificuldades do editor de literatura geral ou de ficção, devem ser mínimas ao serem comparadas com o editor que se atreve a especializar-se em poesia moderna” (2012, p. 798). O livro de poemas, no entanto, cumpria a função social de habilitar esses escritores em um meio pouco especializado para outros trabalhos. O próprio Mário de Andrade assinala uma transformação nessa dinâmica no começo dos anos 1940:
Há um realismo novo, um maior interesse pela inteligência lógica, que se observa muito bem nisso de serem agora mais numerosos os escritores que iniciam carreira escrevendo prosa e interessados só por nela, quebrando a tradição do livrinho de versos inaugural (Andrade, 1978, p. 185) (Grifos nossos)
A lírica de João Cabral, como dito, plasma e tematiza esse novo contexto de profissionalização do escritor e do campo literário. Em “O engenheiro” de maneira mais explícita ao, por exemplo, procurar abrir um espaço para o poema em um tempo de “doze horas”, e ao contrastar a dicção lírica com a prosaica, ou ainda ao acusar um cotidiano de trabalho mais rígido[26] – o que é sentido dessa maneira principalmente pelos “fazendeiros do ar”, ou pelos artistas que perderam parte dos, digamos assim, privilégios. A “adesão ao comunismo” de Cabral aconteceu, ao que tudo indica, de maneira simultânea à percepção dessa matéria impura, ou das fezes em relação à pureza, fato que parece ter desencadeado a escrita de “O cão sem plumas”. Como ele declarou: “Este livro [O cão sem plumas] nasceu do choque emocional que experimentei diante de uma estatística publicada em O observador econômico e financeiro. Nela, soube que a expectativa de vida em Pernambuco era de 28 anos, enquanto que na Índia era de 29” (Athayde, 1998, p. 104).
“O cão sem plumas”, que foi confeccionado pelo autor em sua pequena gráfica caseira em Barcelona, assim como “Psicologia da composição”, constrói uma relação entre a voz no poema e uma situação objetiva melhor demarcada, ou mais imediatamente especificada: a paisagem nordestina atravessada pelo rio Capibaribe. O elemento líquido, que o livro anterior de 1947 negou por um processo bastante particular de “secagem”[27] – que apresenta certa pureza tão feroz, para novamente usar as palavras de Drummond, desumanizada, dentro da (auto)reflexividade apontada acima – retorna agora como um dado da paisagem[28], com uma geografia delimitada, depois do deserto “abstrato” procurado em diversos planos da construção de seu livro anterior, explicitamente colocado em Fábula de Anfion. Isso acontece pelo fato do Capibaribe virar uma espécie de personagem principal de “O cão sem plumas”.
Cabral desloca o polo de sua poética e a sua atenção para essa grande massa líquida, o rio, que parece uma espécie de oposto do deserto anterior, ao mesmo tempo em que provoca uma tensão em direção à “secagem”, ou ao espessamento constante dessa massa. A briga no processo compositivo, de que “O cão sem plumas” é a expressão, parece acontecer entre essa abertura para uma realidade determinada – geograficamente, socialmente, politicamente – e essa poética negativa, da expressão da ausência, construída com a coerência formal de seu livro anterior, que empurra a voz para o deserto e seus derivados poéticos.
Como no “espírito de contradição organizado” de “Psicologia da composição”, essa massa líquida se abre no contrário que tinha negado, também em “flores” –
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro (Melo Neto, 2003, p. 106)
– um tópos que vimos aparecer em seu livro anterior e ressurge neste. Essas flores, no entanto, conservam os elementos negados – são “pobres e negras / como negros” – e dessa caracterização perspectiva o elemento humano, com marcador racial, mesclado a essa paisagem. De “flores” o rio abre-se em “flora”, ou nessa vida vegetal:
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
[...]
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema. (Melo Neto, 2003, p. 108-109)
A característica dos cães – sem plumas – que nomeia o livro é a seco atribuída a “aqueles homens” nessa perspectiva de conferir consciência ao rio. Esse “saber” do rio se desloca para o “análogo” humano/natural de plumas: barbas e cabelos. Esses, que são atributos de “mamíferos” (pelos), ganham, nessa triangulação narrativa em que a voz diz o que o rio sabia, consistência vegetal e de crustáceos, dando continuidade à “história natural” particular, ou a essa falta de limite entre natureza e cultura – que, por sua vez, acontece sob o signo do “doloroso” com certa dor social que a construção, pensando em certo “anti-humanismo” dos livros anteriores, parecia negar. O “doloroso” aqui “molha” a construção – ou apela para uma dimensão um tanto sentimental – que em alguma medida nega a “secura” procurada no plano da forma. O modelo estético ao fundo parece em alguma medida o de Mário de Andrade, ou esse humanismo particular, que tem Portinari como uma espécie de ideal, que convoca a um tipo de comoção social mais imediata, ou a uma adesão mais imediata, mais sentimental, do leitor.
Esses problemas de “O cão sem plumas”, ou essa tensão entre essa forma que se pretende “seca”, (auto)reflexiva, substantiva, e esse assunto que “molha”, ou convoca a certo tom “sentimental”[29], nessa chave humanista particular, fazem desse livro, ao lado de “Psicologia da composição”, um dos momentos mais fortes da lírica moderna brasileira.
A elaboração de João Cabral, no entanto, parecia levá-lo, principalmente depois de O cão sem plumas, a uma posição de negação dessa “modernização” artística e de uma afirmação de um modernismo “social” mais aos moldes da década de 1930, o que será modulado posteriormente à medida que ele é colocado como o principal poeta moderno pelos concretistas[30]. Em carta a Manuel Bandeira, escrita em dezembro de 1951, antes dessa consagração que obteve no campo literário ainda na década de 1950, Cabral faz uma autocrítica em relação ao seu namoro anterior com tendências modernistas “abstratas” e “internacionalistas"[31]: “Eu namorei essas coisas [“abstracionismo em pintura, de seu equivalente atonalismo da música e [...] o neoparnasianismo-esteticismo da Geração de 1945] quando estive no Brasil” (Süssekind, 2001, p. 146). Essa “tomada de consciência” aparece na mesma carta ligada a uma valorização nacionalista em que inclui (contra o cosmopolitismo, ou o internacionalismo, de outros – cita como exemplo Otávio de Farias e Adonias Filho): “Gilberto Freyre, Villa-Lobos, José Lins do Rego, Portinari etc.” Sergio Miceli acredita haver em uma carta a Drummond de 1940 uma referência à obra de Gilberto Freyre em um tom muito diferente ao da carta a Bandeira da década seguinte:
Numa alusão cifrada, mas que me parece inequívoca, à obra de Gilberto Freyre, outro parente distante, "ditador intelectual desta boa província" (afirmação feita em carta para Drummond de 1940), a única estrofe entre parênteses ironiza o otimismo dessa "terra de sociólogos" ventilado nas "salas de jantar", em que "as grandes famílias espirituais" da cidade chocam "os ovos gordos de sua prosa" (Miceli, 2008, p. 426).
Essa posição que assume nesta carta em relação a um conterrâneo corresponde na obra de Cabral ao intervalo entre O cão sem plumas e O rio. Posterior, portanto, a sua adesão ao comunismo e a uma posição mais afinada com a de Mário de Andrade. Ele muda, da década de 1940 para o começo da seguinte, o juízo em relação a Gilberto Freyre que passa, caso a afirmação de Miceli esteja correta, de "ditador intelectual desta boa província”, ou dessa “terra de sociólogos”, no começo da década de 1940, para a colocação de Freyre, nesta carta de 1951, no panteão dos maiores do país ao lado de "Villa-Lobos, José Lins do Rego, Portinari etc.". Ou ao lado daqueles que aludem a sua “adesão” a um nacionalismo particular, que de fato havia dado o tom da cultura nacional nas últimas décadas e que, naquele momento, começo dos anos 1950, começava a entrar em conflito com outras posições que passaram a tensionar o campo literário e intelectual, e o modernismo em vias de acelerada institucionalização[32]. Os concretistas, uma dessas posições, elegem como modelo artístico, neste momento, João Cabral para forjar a diferenciação em relação a esse nacionalismo particular, que tem Mário de Andrade na origem, hegemônico nas décadas anteriores – nacionalismo de que Cabral procurava se aproximar no começo da década de 1950, como O cão sem plumas, O rio e a carta para Bandeira indicam.
João Cabral em 1952, como dito no começo deste artigo, é removido pelo Itamaraty para o Brasil para responder a um inquérito em que é acusado de formar uma célula comunista. Neste momento escreve O rio (1953), que deixa mais saliente o humanismo particular que desponta em O cão sem plumas. E, ainda, acontece um sintomático enrijecimento das balizas métricas que passam, de fato, a organizar a composição de maneira mais efetiva. Ou, dito de outra forma, suas obras começam a se estruturar, a partir de O rio, em torno de metros e de projetos mais demarcados, ou mais rígidos – que Cabral começou a defender como uma perspectiva mais “racional”, “construtivista” – o que dura e se intensifica até A educação pela pedra (1966), livro que marca o fechamento do seu ciclo moderno[33]. E, ao que parece, do ciclo moderno no país, o que aconteceu na virada para a década de 1970[34]. Em 1966 o autor se torna mais popular, ou amplia sua esfera de consagração para além do campo literário, como dito, por conta da encenação de Morte e vida severina em várias cidades do Brasil e, depois, no Festival de Nancy, na França e em algumas cidades de Portugal. Essa via de consagração da sua obra promove leituras retrospectivas na chave do “engajamento”[35] até de livros como O engenheiro (1945), que pareciam, na época, como vimos, o exato oposto dessa chave para o jovem Antonio Candido.
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[2] Na biografia de Drummond, Cançado comenta: Esses poemas (e mais alguns outros, de uma fase anterior) sairiam publicados em 1940, numa tiragem de 150 exemplares, e numa edição clandestina, que circulou por fora das livrarias e dos controles da polícia política [...] Antonio Candido, então secundarista na USP, e iniciando-se na resistência democrática de esquerda, conta que o exemplar que ele teve em mãos pertencia a Rubem Braga e chegou a São Paulo numa espécie de papel furtivo, despistador, para burlar a polícia. “Ele parou nas minhas mãos dois ou três dias”, conta Antonio Candido (Cançado, 1993, p. 157-158)
[3] "José Olympio ajudou a configurar o campo e estimulou a proliferação dos romances sociais escritos durante esse período" (Johnson, 1995, p. 173).
[4] Serge Guilbaut (1983) demonstra em seu livro como questões estéticas e políticas estão intimamente relacionadas neste mesmo momento em que Cabral está na Espanha. O autor aponta para os momentos precisos em que aconteceram as reorientações políticas dos intelectuais nos Estados Unidos tendo por base fatos históricos bem específicos e, ainda, como esses momentos estão conectados com as transformações na produção artística e na crítica. A tese de Guilbaut foi colocada em xeque em relação à hegemonia que o expressionismo abstrato adquiriu no fim dos anos 1940. David Caute (2003), com efeito, apresenta elementos que questionam essa hegemonia naquele momento e, também, na década seguinte. Faz isso por meio de um levantamento rigoroso do que foi efetivamente apresentado em exposições dentro e fora dos Estados Unidos ao longo, principalmente, da década de 1950. O argumento de Caute é bem construído, mas não invalida o principal do trabalho de Guilbaut que é a caracterização de uma complexa transformação, ou de um processo, efetivamente, que aconteceu de meados dos anos 1930 ao final da década de 1940 – processo que, de fato, levou, só que não de maneira imediata, ou não já no final de 1940 e no começo de 1950, a um rearranjo das tensões culturais e políticas em um plano transnacional cuja consequência para o contexto brasileiro precisa ser melhor investigada. O título francamente provocativo, How New York Stole the Idea of Modern Art, pode induzir, erroneamente, a certo esquematismo do trabalho de Guilbaut.
[5] José Murilo de Carvalho defende, pensando nos intelectuais de São Paulo, que a "maior homogeneidade [dessa] intelectualidade paulista, sua vinculação à burguesia agrária, dificultava a inclusão em sua visão de Brasil do setor também moderno da cidade que era o operariado [...] Mario de Andrade tratava do povo mais em termos culturais do que sociais e mesmo políticos" (Carvalho, p. 21).
[6] Em carta ao amigo e colega diplomata, Lauro Escorel, em 12 de junho de 1966, Cabral comenta com empolgação as apresentações que acompanhou na Europa e como ele se tornou ali uma celebridade para aqueles jovens (Fundo Lauro Escorel, Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro/RJ). Voltaremos a esse ponto, pois ele de fato marca a maneira como sua imagem foi construída, ou estabelece um "poeta engajado nordestino" desde o começo, o que, como veremos, não corresponde com o início da sua trajetória.
[7] Sobre o assunto, que esclarece as aspas, ver Vagner Camilo (2001): o autor demonstra como esse “esteticismo” é particularmente complexo e carrega tensões políticas, embora não na chave da poética anterior de Carlos Drummond.
[8] Eles se conheceram pessoalmente na capital federal no começo dos anos 1940 por intermédio de Murilo Mendes.
[9] Recupero sua trajetória anterior até o deslocamento da família do pernambucano para Recife, antes do seu deslocamento para o Rio de Janeiro, por meio de um trecho de um escorço biográfico em que Sergio Miceli situa Cabral na decadência dos engenhos: “O futuro poeta nasceu pouco antes de ruir o fastígio material familiar. Em 1930, a perda do engenho e as perseguições políticas a seu pai determinaram o translado do clã dos Melo para Recife, onde seus varões tentaram se reaprumar e fazer frente à derrocada patrimonial por meio de sinecuras (cartório paterno) e da orientação profissional dos filhos” (Miceli, 2008, p. 423)
[10] Mário de Andrade “foi a maior figura literária e a liderança cultural hegemônica nesse momento-chave de transição de nossa história intelectual” (Miceli, 2012, p. 106).
[11] É preciso ter no horizonte as transformações políticas em jogo aqui para considerar essa ambivalência: "Certos tipos de discurso tornaram-se inaceitáveis e apesar do seu domínio prolongado durante toda a década de 1930, depois de 1937 o romance social sofreu declínio acentuado. É óbvio que a censura teve um efeito paralisador sobre as intenções políticas dos escritores" (Johnson, 1995, p. 177).
[12] Vagner Camilo (2001) investiga esse ponto em seu livro.
[13] Em um artigo da década de 1960 em que começa a tatear a ideia de campo, Bourdieu opõe, por meio de Paul Válery, dois projetos criadores, um que acontece em resposta quase imediata à expectativa de um público e um em que os projetos criadores, por meio das obras e ações, “tendem a criar seu público” (Bourdieu, 1968, p. 114), o que parece o caso de Mário de Andrade.
[14] “A ponte lançada por Schwitters entre o dadaísmo e o construtivismo não chegou a ser atravessada por ninguém” (Argan, 1992, p. 360).
[15] Sobre o assunto ver a análise de John Gledson (2003, p. 170-200).
[16] O próprio Antonio Candido comenta em um depoimento sobre o período essa mudança de perspectiva: “A entrada do Brasil na guerra em 1942 mudou o nosso absenteísmo e a revista [Clima] pôs de lado a neutralidade, assumindo posição definida” (Calil & Machado, 1986, p. 58).
[17] Os escritores da “geração de 45”, que tinham mais ou menos a idade dos jovens da Revista Clima, começaram de fato a marcar posição no campo modernista se opondo agressivamente à “velha geração modernista de 1922”.
[18] John Gledson (2003) chamou a atenção para isso.
[19] "A figura dominante do congresso foi, sem sombra de dúvida, Carlos Lacerda – embora tentassem mais tarde diminuir o seu realce, pois a política tem razões que a própria razão desconhece" (Martins, 1983, p. 110).
[20] Manuel Bandeira é ainda mais incisivo nesse ponto, em carta para Lauro Escorel escrita em 26/10/1947 ele comenta, sem ter ido, que o congresso "acabou bem [...] depois de anulada uma manobra baixa dos comunistas", mas não a descreve (Fundo Lauro Escorel, Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro/RJ). Tanto Bandeira quanto Drummond estavam sendo atacados pelos novos poetas da revista Orfeu, que, segundo Bandeira em carta para Escorel de 22/12/1947, os chamavam de "gagás de 22".
[21] "Desde 1945 a esquerda mantinha uma posição hegemônica no campo cultural, chegando a um tipo de relacionamento inverso entre o poder político e o discurso cultural, já que a esquerda nunca alcançou o poder político no Brasil [...] A auto-identificação automática dos intelectuais com a esquerda não só leva a um esvaziamento do significado real da categoria – exceto, é claro, naqueles casos onde a militância política acompanha a identificação – mas resulta também numa distorção da verdadeira dinâmica do campo literário, assim como numa frequente distorção da verdadeira relação entre o trabalho intelectual e as relações de poder da sociedade brasileira" (Johnson, 1995, p. 179).
[22] O “alvo” de Antonio Candido era a Geração de 45 que de fato tensionava o campo modernista naquele momento criticando duramente a geração modernista.
[23] Um ensaio que desenvolve com cuidado como se trava esse diálogo é Anfion, arquitecto de Eucanaã Ferraz (2000, p. 81-98).
[24] É a terceira parte de um tríptico.
[25] Relativamente pouco foi feito até o momento para de fato entender a constituição específica do campo literário no Brasil, com a exceção de um estudo pioneiro mais abrangente sobre os intelectuais de 1920 a 1945 de Sergio Miceli (1979) que considera os escritores, mais precisamente um grupo de romancistas profissionais, no seu recorte de pesquisa e o de Randal Johnson (1995) que recuperamos aqui. Miceli constata que "De qualquer modo, ao longo dos anos 1930, ainda não se pode falar em diferenciação funcional entre instâncias de produção, difusão e legitimação" (Miceli, 1979, p. 82). O processo que estamos procurando circunscrever, que tem o fim do Estado novo como marco, indica que essas instâncias ganharam, ao que tudo indica, um grau maior de autonomia na segunda metade dos anos 1940 – os congressos de escritores e a busca por associações profissionais apontam, de todo modo, uma preocupação maior dos literatos nessa direção. Outro trabalho que faz um balanço das tentativas de pensar esse problema e avança na questão é o já citado livro de Vagner Camilo que tem um capítulo dedicado especificamente ao assunto intitulado “A constituição de um campo literário autônomo: formalismo e especialização do trabalho artístico nos anos 40-50” (Camilo, 2001, p. 49-62). Sobre o processo de especialização dos críticos e intelectuais neste período ver o livro "Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo, 1940-68", de Heloisa Pontes (1998).
[26] Muitos exemplos de poemas são possíveis nessa direção no livro de 1945, ver particularmente O funcionário:, A lição de poesia e O poema.
[27] Ver Fábula de Anfion em Psicologia da composição.
[28] Na primeira edição o autor não colocou a numeração que separa as partes, nem o parênteses com subtítulo que se tornam definitivos a partir da versão de 1968.
[29] Tendo aqui a própria obra do autor como baliza.
[30] Cabral comenta em alguns momentos sua relação com o concretismo: “Não sou um concretista. O Concretismo — dizem-no os membros do movimento — surgiu a partir da minha poesia. Afirmam-se, pois, meus seguidores. Tenho orgulho disso, pois trata-se de um grupo de jovens poetas, extremados tecnicamente, muito inteligentes e de grande craveira intelectual. O Brasil de São Paulo. Introduziram o debate de questões que nenhum critico havia aberto antes. Têm todos um grande amor à literatura, à polêmica, à briga” [...] “Duas coisas são essenciais no Concretismo: em primeiro lugar, os concretistas não foram improvisadores, foram pessoas que chegaram com uma cultura extraordinária; em segundo lugar, a atitude concretista não é uma atitude romântica, de inspiração, de lirismo. Esses dois aspectos construtivistas me conquistaram. Quando eu digo Concretismo, digo Concretismo e suas consequências. Como todo movimento literário, houve muita briga, separação de grupos. Eu me refiro a todos” (Athayde, 1998, p. 22).
[31] Ele toma partido aqui, na verdade, de um debate dos anos 1930, familiar de qualquer maneira a Bandeira, entre os romancistas "sociais" e os "introspectivos" ou "psicológicos", como demonstra Miceli (1979, pp. 85-93).
[32] Os museus de arte moderna e a Bienal são só alguns indícios mais imediatos desse processo do final dos anos 1940 para o começo da década seguinte que já havia começado no Estado Novo.
[33] Seu próximo livro, “Museu de tudo” é produzido quase uma década depois, em 1975, e começa, no poema de abertura, sinalizando certo esgotamento do paradigma moderno-construtivo que alimentou sua produção até “A educação pela pedra”: Este museu de tudo é museu \ Como qualquer outro reunido; \ Como museu, tanto pode ser \ Caixão de lixo ou arquivo. \ Assim, não chega ao vertebrado \ Que deve entranhar qualquer livro: \ É depósito do que aí está,\ Se fez sem risca ou risco (Melo Neto, 2003, p. 371).
[34] Existem muitos indícios dessa transformação cultural que aconteceu no país neste momento. Décio de Almeida Prado (1986, p. 119) fala em fim de “um ciclo histórico” do teatro moderno no país, de onde tirei a formulação que usei para o campo literário. Um estudo decisivo e pioneiro para entender esse processo - que é bem mais complexo do que um fechamento de um ciclo artístico - é A moderna tradição brasileira de Renato Ortiz (1987), que demonstra, com uma pesquisa original e de fôlego, essa transformação estrutural da cultura brasileira.
[35] Cabral é "conhecido" em livros didáticos como uma espécie de poeta social continuador da tradição dos romances de 1930. Isso se deve, muito provavelmente, por essa via de consagração do autor que passa por "Morte e vida severina", um texto dramático lateral na sua produção.