ANTONIO ABUJAMRA: A LITERATURA COMO BÚSSOLA E O TEATRO COMO FAROL [1]

ANTONIO ABUJAMRA: LITERATURE AS A GUIDE, THEATER AS A LIGHTHOUSE

André Dias[2]

[1] O presente texto nasce como um desdobramento do ensaio "Antonio Abujamra: personagem de si mesmo" de minha autoria, publicado no livro Literatura e teatro: encenações da existência. Niterói, RJ: EDUFF, 2018.

[2] Professor da Universidade Federal Fluminense. https://orcid.org/0000-0003-2114-7768


RESUMO:

O presente trabalho faz um levantamento da trajetória artística e intelectual do ator e diretor Antonio Abujamra. Para tanto, procurou-se avaliar o tipo de relação que desde muito cedo o artista manteve com a literatura. A investigação, após mapear pontos importantes do trabalho de Abujamra, aferiu que tanto no teatro, quanto no cinema ou na televisão a literatura foi companhia inseparável do diretor, convertendo-se numa espécie de bússola a indicar o caminho do artista. Aferiu-se ainda que seus espetáculos e projetos, direta e indiretamente, lançavam mão de obras literárias, exploravam as potencialidades do humor cáustico e da fina ironia presentes nelas. Como conclusão, constatou-se que o percurso artístico trilhado por Abujamra fez de seu teatro um grande farol para variadas gerações de atores, atrizes, diretores e diretoras.

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Abujamra, literatura.


ABSTRACT:

This paper shows the development of Antonio Abujamra's career as an actor and diretor, trying to analyse the kind of relationship he kept all over his life with literature. After mapping the highlights of his work, we will demonstrate that literature was crucial as an inspiration for both his work in movies and in television, since he was always involved in projects that implicitly or explicitly referred to literary Works, exploring their caustic humor and irony. We will also show that Antonio Abujamra's career was an example for future generations of actors and directors.

KEYWORDS: Antonio Abujamra, literature.


A manhã do dia 28 de abril de 2015 poderia ser apenas o prenúncio de mais um dia comum de outono em São Paulo se ela não trouxesse o inconveniente de anunciar a morte de Antônio Abujamra. O coração do velho provocador parara de bater acometido por um infarto do miocárdio durante o sono. Reconhecido no meio artístico e intelectual pelo talento inigualável e pela perene preocupação com a consistência cultural dos projetos em que se envolvia, Abujamra notabilizou-se também pelo caráter desabusado, pelo humor cáustico e pela fina ironia ao longo de seus mais de cinquenta anos de carreira. Pioneiro na introdução dos métodos teatrais de Bertolt Brecht e Roger Planchon em palcos brasileiros, o diretor e ator conquistou lugar cativo na galeria dos principais realizadores teatrais do país. Poucos, no cenário do teatro brasileiro, realizaram tanto e com tamanha fúria de criação artística como Abu. Um exemplo disso pode ser localizado no ano de 1991, com a montagem da peça Um Certo Hamlet, agraciada com o Prêmio Molière de melhor direção naquele ano. A encenação, uma criação do diretor a partir do original de Shakespeare, além do sucesso de público e crítica, marcou a fundação da Companhia “Os Fodidos Privilegiados”. Com esse espetáculo, tem início o que denomino de “temporada carioca” de Abujamra – período de quase dez anos em que o diretor esteve à frente da trupe, perseguindo tenazmente a liberdade do pensamento e da criação.

Ainda no tempo do Teatro Universitário de Porto Alegre, entre os anos de 1955 a 1957, além de dirigir clássicos do teatro mundial como À margem da Vida, de Tennesse Williams e A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, o diretor também já montava espetáculos oriundos da grande prosa ou da grande poesia, como na peça O marinheiro, construída a partir da obra poética de Fernando Pessoa (SANDRONI, 2004). A prática de adaptar e encenar romances, contos, crônicas e poesias nunca foi algo incomum na longeva carreira do diretor. Entre as montagens desse gênero realizadas, por exemplo, durante sua temporada carioca à frente da Companhia Os Fodidos Privilegiados destacam-se: Exorbitâncias (1995), reunião de textos de poetas, prosadores e dramaturgos que vão de Adélia Prado, passando por Carlos Drummond de Andrade, Campos de Carvalho, William Blake até chegar a Thomas Benhard. O Que é Bom em Segredo é Melhor em Público (1996), montagem concebida a partir da adaptação de crônicas e do folhetim O Homem Proibido, de Nelson Rodrigues. O Casamento (1997), adaptação premiada do romance homônimo, de Nelson Rodrigues. As Fúrias (1999), da obra do poeta espanhol Rafael Alberti e Louca Turbulência (2000), que reunia textos de autores tão díspares e distantes no tempo e no espaço quanto Fernando Pessoa e André Sant’Anna.

A literatura foi uma companheira de viagens concretas e metafóricas na vida de Abujamra. Em longa entrevista concedida à revista Caros amigos, publicada em setembro de 2001, o diretor rememora suas inquietações juvenis nos anos de formação, fala sobre o encontro decisivo com Roger Planchon e com a estética de Brecht, relembra os três meses passados na Alemanha estagiando junto ao Berliner Ensemble – grupo de teatro criado por Bertold Brecht –, aborda a influência de João Cabral de Melo Neto e o incentivo do poeta para que conhecesse mais de perto Brecht e, claro, explicita como a literatura se fazia presente em sua vida.

Cheguei em Madri e comecei a perceber que minha cabeça estava igual. [...] Aí comecei a tentar me mexer um pouquinho mais. Jovem, furiosamente delicado, falei: “Vou sair de Madri, vou botar mochila”. Porque carona, naquela época era cultura. Então, peguei carona, com um pouquinho de dinheiro no bolso, uma miséria, desci pelo sul da Espanha todo, Granada, Sevilha, até lá embaixo, Cádiz. Claro que, levando debaixo do braço Rafael Alberti, levando Miguel Hernández, Antonio Machado, Pablo Neruda e um pouquinho de Lorca [...]. Aí, eu estava lá, mas minha cabeça continuava igual apesar das leituras. Falei: “vou fazer o norte da África por terra, carona”. Chego no Marrocos, numa cidade chamada Fez [...]. Ficava maravilhado com aquilo e disse: “vou continuar assim, vou seguir pela África”. Passo pela Argélia. [...] Estava em guerra, De Gaulle não queria dar a independência à Argélia. [...] Tenho cara de árabe, aí fui indo, cheguei em Argel. Queria ir até a Túnisia. Na Argélia já pensava: “Meu Deus, o Camus aqui dizia: ‘entre a justiça e a minha mãe, eu prefiro a minha mãe’”. [...] O Camus era um maravilhoso briguento com o Sartre, uma luta muito bonita entre os dois: um existencialista e outro antiexistencialista [...] Em Túnis, claro fui até Salambô. Por que Salambô?  Flaubert, debaixo do braço, escreveu Salambô. Então, fiquei lá vendo o que era aquilo [...] era bonito aquilo tudo e eu começava a compreender Flaubert. Eu achava que a Madame Bovary era eu, sabe, apesar de estar em Salambô. (Grifos meus) (ABUJAMRA, 2001, 33).

A passagem da entrevista é muito significativa, pois expõe o tipo de relação que desde muito cedo o diretor manteve com a literatura. Não é exagero afirmar que para Abujamra literatura e vida se fundiram numa simbiose plena da descoberta do mundo. Não é possível determinar de modo categórico quem tomou primeiro o artista, se a literatura ou se o teatro. Isso, no entanto, é menos importante. Fundamental mesmo é compreender que Abujamra seguramente seria outro homem sem esse precioso encontro com o universo literário. No teatro, no cinema ou na televisão, a literatura foi uma companhia inseparável do diretor. Durante quinze anos, por exemplo, já homem avançado em idade, o artista se fez apresentador do emblemático Provocações. Programa exibido até sua morte pela TV Cultura de São Paulo, por onde transitaram as mais diferentes figuras e que tinha como um dos pontos altos o momento em que Abujamra brindava os telespectadores com suas inconfundíveis leituras de diferentes obras literárias. Mais uma vez, o artista incansável na tarefa de se reinventar tinha a literatura como mote criativo, ingrediente sempre presente em seu trabalho. Olhando retrospectivamente, a literatura foi uma espécie de bússola e amuleto para o mais cético e estranhamente doce dos bruxos que o teatro brasileiro já teve. 

Ao longo dos mais de 50 anos de carreira Antonio Abujamra colecionou um elenco de frases que dão muito bem a medida de seu espírito inquieto e provocador: “a vida não tem roteiro”; “a vida é sua, estrague-a como quiser”; “O palco é um abismo, para subir nele, tem que ter asas”; “Com Hamlet todo diretor tem o direito de fazer o que quiser, porque Shakespeare será sempre melhor que todos nós”. Entretanto, poucas foram tão certeiras quanto a que segue: “Não pensem, façam. Qualquer mente medíocre pode ter uma boa ideia. Realizá-la é que é genial”. Em outras palavras, o diretor exortava seus interlocutores a transformarem sonhos em projetos executados. Assim, a ideia em potência se converteria em obra realizada, sujeita à depuração do olhar da crítica, do público e do próprio artista.

O presente trabalho encontra nas formulações de Mikhail Bakhtin (2003, 2015) sobre os atos da enunciação discursiva o solo bem pavimentado para procurar compreender como as condições de produção interferem e ajudam a forjar os sujeitos social e historicamente localizados. Dito de outro modo, é preciso ter em conta que os indivíduos se constituem como tais a partir do encontro com o outro e esse encontro se dá sempre em determinadas circunstâncias e em um horizonte histórico definível. Nesse sentido, para melhor entender a trajetória intelectual e artística de Antonio Abujamra é necessário decifrar os processos sociais, culturais e históricos que foram fundamentais para a projeção da figura do diretor e ator. Sendo assim, não se pode esquecer que os enunciados proferidos por Abujamra nas mais diferentes esferas da experiência humana – quer seja no teatro, na vida pública, no espaço privado ou mesmo em suas reflexões pessoais – nunca se deram ao acaso, tampouco eram desinteressados. Como bem advertiu o filósofo russo: “um enunciado absolutamente neutro é impossível” (BAKHTIN, 2003, p. 289), donde se conclui que a neutralidade é uma impossibilidade.

 As provocações perpetradas pelo teatro de Abujamra devem ser percebidas como fruto de um extenso diálogo entre o artista e as múltiplas vozes que o acompanharam ao logo da existência. Assim, cada texto dramatúrgico descoberto ou revisitado, cada obra poética ou romanesca lida, cada espetáculo montado, cada encontro com variadas gerações de atores, atrizes e diretores ajudaram a fomentar um intricado concerto de vozes em favor de uma identidade artística complexa e marcante. Dessa forma, ancoramo-nos nas formulações de Bakhtin, a fim de melhor compreender o lugar de destaque dado aos encontros das múltiplas vozes presentes no mundo:

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade de esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo [...]: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. [...] É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2003, p. 297)

As reflexões do pensador russo iluminam a percepção da relevância dos encontros das múltiplas vozes presentes no mundo. No caso particular de Abujamra, torna-se incontornável, por exemplo, o reconhecimento da força dos enunciados literários para a formação da sua personalidade artística e existencial. Não é difícil conjecturar que a figura humana e artística do diretor seria certamente outra sem o decisivo encontro com a poesia de Fernando Pessoa ou o teatro de Tennesse Williams e Eugène Ionesco, ainda no tempo do Teatro Universitário de Porto Alegre. Da mesma forma, a convivência durante um mês, em 1958, com João Cabral de Melo Neto, então cônsul do Brasil na França e a exortação do poeta para que o jovem diretor conhecesse em profundidade o legado de Brecht foram fundamentais para a projeção de um outro Abujamra. Além disso, destaquemos: a) O tempo de estudo passado primeiro em Paris, ao lado de Jean Vilar, diretor do Teatro Nacional Popular, que fazia espetáculos de forte tonalidade política; b) A descoberta do trabalho de Roger Planchon, diretor com quem Abujamra afinou intelectualmente a cabeça, o que o levou a transferir-se de Paris para Villeurbanne, nos arredores de Lion, para estudar com o francês, que se transformaria no mais importante diretor brechtiano da época; c) A imersão no mundo de Brecht, primeiro mediada pelo olhar de Planchon e depois através do estágio no Berliner Ensemble. Todos esses fatos o credenciaram para que viesse a ser pioneiro na encenação de Brecht profissionalmente no Brasil.

Esses encontros e os demais aqui não elencados foram decisivos para a formação do Abujamra inquieto, amante do humor, iconoclasta, dono de uma doce violência juvenil – mesmo depois de entrado em anos. Esse sujeito desassossegado, que a cada espetáculo desafiava os bons modos, as suas regiões de conforto e de seus interlocutores, aprendeu a inventar asas para mergulhar no abismo da arte. Não era raro vê-lo enunciando aos quatro ventos o necessário embate com o fracasso – um dos maiores tormentos de grande parte da classe artística. Em entrevista concedida à Paula Bonelli, publicada em 16 de janeiro de 2012, no jornal O Estado de São Paulo, após ser concitado a fazer um balanço das mais de cem peças dirigidas até ali, Abujamra responde o seguinte: “tive mais de cem fracassos. E, para mim, não têm a mínima importância. Para um artista, o fracasso e o sucesso são iguais. Os dois são impostores” (ABUJAMRA, 2012, p.1). A afirmação do diretor não deve ser lida como uma simples frase de efeito, dita apenas para impressionar seus interlocutores. Vista sob a ótica da teoria do enunciado bakhtiniano, ela é simultaneamente uma “atitude responsiva” – porque está em diálogo com os postulados que a antecederam e com as falas que lhe sucederam – e a “ressonância” das vozes assimiladas, contestadas ou negadas, que se cruzaram para constituir um dos mais incomuns artistas brasileiros.

Parece evidente que a resposta a indagação da jornalista carrega uma acidez acentuada. Entretanto, com o propósito de adensar a reflexão sobre o binômio sucesso/fracasso – e por extensão lançar luz sobre os processos formativos do diretor – torna-se indispensável analisar a questão a partir do prisma existencialista. Numa perspectiva existencialista, o centro do problema expresso na resposta de Abujamra repousa não na experiência do sucesso ou do fracasso em si. De acordo com o olhar sartriano, o fundamental é como o individuo se porta diante dessas vivências. Ou seja, o ponto principal será o que o sujeito permite que essas experiências façam com ele. Sob a ótica existencialista, sucesso e fracasso são dados do mundo, possibilidades concretas presentes na vida de qualquer sujeito. A mirada do filósofo francês torna-se, assim, uma espécie de chave para a compreensão do percurso formativo do diretor brasileiro, pois alguns tópicos do existencialismo nos parecem corresponder à ótica adotada por Abujamra em seus espetáculos.

José Ortega y Gasset, ao tratar do humor em A ideia de teatro (1946), abordou um conceito importante que também ajuda a pensar as concepções estéticas e a trajetória de Abujamra. Para aqueles que acompanharam a carreira do provocador, salta aos olhos a relevância que o diretor dava ao humor desde os primórdios de seu trabalho.

O humor em Abujamra estava quase sempre associado ao riso desestabilizador da ordem e questionador das ideias hegemônicas. Nesse sentido, a noção do filósofo espanhol Ortega y Gasset de que tanto a vida quanto o teatro estão associados de modo inseparável à ideia de farsa – entendida em primeira instância pelo filósofo como ilusão, mas sem deixar de levar em consideração o gênero dramatúrgico que tem no seu cerne o cômico e o ridículo – é de grande valia para melhor compreender o trabalho do diretor brasileiro, já que:

 [...] Sendo a farsa um dos fatos mais permanentes da História, isto quer dizer que a farsa é uma dimensão constitutiva, essencial da vida humana [...]. Portanto, que a vida humana não é, nem pode ser “exclusivamente” seriedade, que a vida humana é e tem que ser, por vezes, em certos momentos “brincadeira”, farsa; que por isso o Teatro existe e que o fato de haver Teatro não é pura casualidade e eventual acidente. (ORTEGA Y GASSET, 2014, p. 50)

Sobre a centralidade do humor, em 1998, Abujamra e Os Fodidos Privilegiados estrearam a montagem do diretor, em dobradinha com João Fonseca, para um dos mais importantes textos do teatro brasileiro, Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Além de manter e ratificar as críticas à sociedade presentes no texto original, o diretor seguiu firme no caminho do riso dissonante e incorporou uma crítica substancial ao processo de homogeneização cultural produzido pela televisão. 

A encenação nasceu de uma leitura dramatizada do texto do escritor paraibano realizada em 08 de junho de 1997. A convite da Sociedade Brasileira de Atores Teatrais (SBAT). Depois da caminhada pela obra de Nelson Rodrigues – além da encenação de O casamento (1997), Os Fodidos Privilegiados já tinham montado A Serpente (1991) e O que é bom em segredo é melhor em público (1996) – chegava a hora do diretor e sua trupe encararem a montagem de um texto muito diverso daqueles que, até então, vinham encenando. O caminho não foi fácil, como se supõe. João Fonseca em entrevista concedida à Roberta Oliveira, no Segundo Caderno, de O Globo explicava o porquê de encenar o texto de Suassuna: “Depois de apresentá-lo em forma de leitura na Sbat, descobrimos que o Auto da compadecida não é um texto tão montado quanto parece. As pessoas conhecem seu conteúdo, mas a maioria nunca teve a oportunidade de vê-lo em cena.” (FONSECA, 1997, p. 12). A afirmação, aos olhos de hoje, pode parecer imprecisa, especialmente depois do sucesso de público e crítica da adaptação do texto para a TV e o cinema.

Em 1999, a Rede Globo exibiu o Auto da compadecida em quatro capítulos. A minissérie foi escrita por Adriana Falcão, Guel Arraes (que também dirigiu a adaptação) e João Falcão. Na versão para televisão, o Auto da compadecida teve seu texto fundindo com passagens de outras duas peças de Ariano Suassuna: O santo e a porca e Torturas de um coração. A minissérie ajudou a projetar nacionalmente as carreiras de Matheus Nachtergaele e Selton Mello, além de contar com um elenco de primeira, formado por: Fernanda Montenegro, Lima Duarte, Paulo Goulart, Marcos Nanini, Rogério Cardoso, Denise Fraga, Diogo Vilela, Enrique Diaz, entre outros. No ano seguinte, uma versão editada da minissérie foi levada para o cinema, tendo sido assistida por mais de dois milhões de espectadores. O filme arrebatou diversos prêmios, com destaque para o Grande Prêmio Cinema Brasil, do Ministério da Cultura, nas categorias: melhor diretor (Guel Arraes), melhor ator (Matheus Nachtergaele), melhor roteiro e melhor lançamento. Além disso, foi o filme brasileiro mais assistido em 2000.

Um ano após a encenação do Auto da compadecida pelos Fodidos Privilegiados, com direção de Antonio Abujamra e João Fonseca, a obra máxima de Suassuna seria amplamente divulgada pela televisão, transformando-se em um dos maiores fenômenos de audiência de todos os tempos na TV. A peça, antes de se popularizar após sua adaptação para a televisão, já havia sido bastante encenada. Entre os anos de 1956 e 1981 foram doze montagens teatrais feitas por diversos diretores e diretoras, destacando-se as encenações conduzidas por Cacilda Becker (1959) e Dulcina de Moraes (1960). A última montagem profissional antes da realizada pelos Fodidos Privilegiados foi dirigida por Ednaldo Freire para a Fraternal Companhia de Artes e Malas Artes em 1981. Havia em 1998, então, um hiato de dezessete anos entre a montagem da Fraternal e a executada por Abujamra e Fonseca. Nesse sentido, a impressão de João Fonseca de que o público conhecia o conteúdo do texto, mas não a encenação era pertinente, pois durante quase duas décadas a obra de Suassuna não havia sido encenada profissionalmente.

A montagem de Abujamra e Fonseca foi recebida com entusiasmo pelo público e pela crítica especializada. Nome dos mais importantes e temidos da crítica teatral brasileira, Barbara Heliodora, por exemplo, em coluna publicada no Segundo Caderno de O Globo, em 28 de dezembro de 1998, arrola a montagem do Auto da Compadecida como uma das dez melhores peças daquele ano. Mesmo discordando de algumas escolhas da direção, a crítica destacava o seguinte sobre a montagem: “... havia uma vitalidade em cena que é crucial para a vida do teatro.” (HELIODORA, 1998, p 11). Carlos Dala Stella, em texto escrito especialmente para o Caderno G, do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, durante o 7º Festival de Teatro de Curitiba, em 1998, afirmava:

Divertida, essa é a primeira impressão que se tem da montagem do Auto da Compadecida, dirigida por Antonio Abujamra. Nenhuma peça apresentada no 7º Festival de Teatro ofereceu ao público um humor tão próximo da ingenuidade, tão espontâneo, tão brasileiro. Um humor que só se vê nos palcos quando se retoma um “clássico” da dramaturgia popular brasileira, caso do texto de Ariano Suassuna, encenado pela primeira vez em 1957, no Rio de Janeiro, também num festival. [...]

Divertir é uma das qualidades inerentes ao texto, portanto, mas é a intenção personalíssima de divertir-se a si mesmo e à plateia que particulariza a direção de Abujamra. A inclusão, por exemplo, da equipe de televisão, seccionando as falas dos personagens, denuncia a tentação irresistível que a telinha exerce sobre as pessoas, de um modo geral, e sobre os artistas especialmente. Tentação invariavelmente correspondida, expondo uns e outros ao ridículo [...]. Mas, mais do que isso, esse recurso denuncia um gozo anárquico do diretor, capaz de revigorar a crítica a um meio de comunicação que condena ao silêncio eterno tudo que escapa a seu controle. (STELLA, 1998, p. 8)

Chamava atenção do crítico, em um primeiro momento, algo parecido com o anotado por Barbara Heliodora. O que a experimentada crítica chamava de “vitalidade em cena”, Stella designou como “divertida”. Entre as duas opiniões havia em comum o fato de que a montagem contagiava o público com seu viço e empatia. Talvez, por essa razão, a encenação de 1998 conseguia manter o frescor e a espontaneidade já registrados na primeira montagem, de 1957. O que dava personalidade à encenação de Abujamra e Fonseca era o tratamento, a um só tempo, respeitoso e profanador dado ao texto original. Se por um lado, o texto base estava lá na sua integridade, por outro, ele sofria as injunções da interferência de um diretor que sabia ser sarcástico e provocador. Ao trazer para o enredo da montagem a figura de uma equipe de televisão – fato criticado negativamente por Barbara Heliodora – a fim de acrescentar e atualizar o elemento crítico do texto original, Abujamra acabou por ensejar sua assinatura artística ao espetáculo. A título de ilustração, é importante lembrar que ao longo das traquinagens e piruetas de João Grilo e Chicó, o palco era invadido por uma equipe de televisão, fato que alterava o comportamento das personagens, transformando-as em seres afetados e artificias. Quando a equipe de televisão entrava em cena, o público acompanhava a ação através de dois telões instalados nas laterais do palco, pois os atores deixavam o público de lado e se aglomeravam em torno da câmera. A ação descrita, ajuda a compreender a crítica ao poder fetichista que a televisão adquiriu no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo, a peça se reverte de um aspecto metalinguístico ao pautar a condição dos atores e atrizes diante dos ditames da televisão.    

O que para Barbara Heliodora era um defeito, tornou-se uma virtude para Carlos Della Stella. Mais do que uma virtude, Stella via na ação de Abujamra uma maneira de revigorar e estabelecer uma firme crítica àquela que já foi chamada de o 4º poder, a saber, a televisão. De maneira anárquica, mas absolutamente cerebral, Abujamra conseguiu imprimir em sua montagem uma atualização fundamental ao elenco de críticas já existentes no texto original ao incorporar jocosamente a equipe de televisão. Ao tornar a televisão a única entidade incapaz de receber a absolvição da Compadecida, o diretor fustigava de modo sarcástico a instituição que durante muitos anos foi praticamente intocável no país. Esse acréscimo, a meu ver, deu curso e novo ânimo ao clássico da dramaturgia brasileira.

Outro acréscimo ao texto original que tornava o espetáculo dono de uma vitalidade própria foi a inserção de dez canções originais compostas por Eduardo Krieger e Marco Abujamra. As canções executadas ao vivo e cantadas pelos atores e atrizes durante a encenação mereceram, juntamente com o conjunto do espetáculo, as seguintes considerações em matéria publicada no Caderno Tribuna Bis, do jornal carioca Tribuna da Imprensa, de 30 de abril de 1998:

Dirigida com alegria e vitalidade, a montagem exibe bons trabalhos do numeroso elenco de 21 profissionais, perfeitamente identificados com o universo retratado. E que além disso cantam com entusiasmo as ótimas composições de Eduardo Krieger e Marco Abujamra, este último também responsável pela eficiente direção musical – cabe também registar a ótima atuação dos músicos Claudio Bernardo, Claudio Fryedman, Fabiano Krieger, Fabiano Salek e Marcelo Reis. (TRIBUNA BIS, 1998, p. 6)

Não por acaso, a trilha original da montagem era composta por um repertório de xotes, forrós, baiões, emboladas e repentes. Os ritmos escolhidos para as composições eram quase uma exigência do texto original, que conseguiu captar tanto a paisagem humana, quanto a geográfica do nordeste brasileiro com maestria e intimidade. O texto de Suassuna respirava e exalava o universo popular por todos os lados e, Abujamra tendo compreendido isso perfeitamente, tratou de criar um espetáculo de raízes populares e brasileira. Assim se posicionou o diretor: “A nossa ‘Compadecida’ é uma festa popular, apesar de esta ser a palavra mais gasta do teatro brasileiro. Pedi que os atores fossem em busca das raízes da comédia clássica [...] É um texto com gosto de gente muito sabida”. (ABUJAMRA, 1997, p. 12). Como sempre, o diretor mantinha a língua afiada para a provocação e inicia sua fala expressando o descontentamento com a apropriação da ideia de “popular” no teatro brasileiro. Entretanto, reconhece que a montagem bebia nessa extensa tradição e, por isso, exigira de seus atores que mergulhassem na comédia clássica, fonte inesgotável de referências fundamentais para entender as concepções de popular.

A julgar pelos prêmios e pelo sucesso de crítica e de público, Abujamra e Fonseca conseguiram que Os Fodidos Privilegiados contassem com excelência uma história brasileira, bem diferente daquelas que vinham contando até então. Os diretores conseguiram fazer a transição do universo carioca, urbano e calcado nos alçapões existenciais dos indivíduos, construído por Nelson Rodrigues, para um mundo do riso aberto e da aridez travestida em festa, de Suassuna.

Para a trajetória do sujeito que fez da Literatura sua bússola e amuleto o dia 13 de maio de 2019 teve um sabor especial. Nessa data, foi inaugurada na SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco – a Biblioteca Antonio Abujamra. O acervo reúne mais de 10 mil itens do diretor e ator. São cds, dvs, cartas, programas de teatro, roteiros, 5400 livros e 3100 peças dos mais variados autores, incluindo O Provocador e Tributo a Bertolt Brecht, escritas por ele. O homem que amava os livros, está agora um pouco em cada exemplar desse patrimônio. O conjunto dessas obras ajuda a compreender os caminhos e as palavras que forjaram o artista da provocação.

Em 28 de abril de 2015, fecharam-se pela última vez as cortinas e apagaram-se definitivamente os refletores de uma vida inteira votada à Arte. Durante mais de cinco décadas, Abujamra fez do teatro um grande farol que ajudou a guiar, nem sempre por águas tranquilas, gerações de atrizes, atores, diretoras e diretores. Abu não está mais entre nós, no entanto, seu legado artístico segue a iluminar as veredas daqueles que como ele souberam e sabem a incontornável lição de sempre amar a dúvida.

REFERÊNCIAS

ABUJAMRA, Antonio In. OLIVEIRA, Roberta. “Um Abujamra popular e Brasil: diretor estréia em janeiro nova montagem de ‘Auto da compadecida’, de Ariano Suassuna”. In. Segundo Caderno, Rio de Janeiro, O Globo, 11 dez. 1997, p. 12.

_____. “Abu curto e grosso”. Caros amigos, São Paulo, Ano V, Edição 54, Setembro 2001, p. 33. Entrevista concedida à Marina Amaral, Julianne M. do Carmo, Marina Vergueiro e Mylton Severiano.  

_____. “Antonio Abujamra, o mal-humorado bem-amado”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 jan. 2012. Estadão Cultura, p.1. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,antonio-abujamra-o-mal-humorado-bem-amado-imp-,823170 . Acesso em 21 de julho, de 2017.

AUTO da Compadecida: clássico de Suassuna em versão irretocável. In. Tribuna Bis,  Rio de Janeiro, 30 abr. 1998. Tribuna da Imprensa, p. 6.

BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra, São Paulo: Ed. Martins Fontes. 2003.

_____. Teoria do romance I – A estilística. Tradução, Notas e Glossário Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2015.

FONSECA, João In. OLIVEIRA, Roberta. “Um Abujamra popular e Brasil: diretor estréia em janeiro nova montagem de ‘Auto da compadecida’, de Ariano Suassuna”. In. Segundo Caderno, Rio de Janeiro, O Globo, 11 dez. 1997, p. 12.

GASSET, José Ortega Y. A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2014. (Elos; 25).

HELIODORA, Barbara. “Textos nacionais comprovam sua força: seis histórias brasileiras estão entre os destaques de um ano de muitos enganos” In. Segundo Caderno, Rio de Janeiro, O Globo, 28 dez. 1998, p. 10.

SANDRONI, Paula. Primeiras provocações: Antônio Abujamra e o Grupo Decisão. Rio de Janeiro, 2004. 112 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC) – Escola de Teatro – UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

STELLA, Carlos Dala. “Visceral e anárquico” In. Caderno G, Curitiba, PR, Gazeta do Povo, 26 mar. 1998, p.6

 

Submetido em 12/08/2019

Aceito em 04/12/2019