JAIDER ESBELL, MAKUNAIMA/MACUNAÍMA E A ARTE/LITERATURA INDÍGENA

JAIDER ESBELL, MAKUNAIMA/MACUNAÍMA AND THE INDIGENOUS ART/LITERATURE

Roberto Mibielli[1]

Sheila Praxedes Pereira Campos[2]

José Luís Jobim[3]

[1] Professor da Universidade Federal de Roraima. https://orcid.org/0000-0002-4171-3280

[2] Professora da Universidade Federal de Roraima. https://orcid.org/0000-0002-5648-6682

[3] Professor da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do CNPq, Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) https://orcid.org/0000-0002-0271-6665


RESUMO:

Uma das vozes mais interessantes da cena contemporânea no Brasil, o escritor e artista plástico Jaider Esbell, nascido no Estado de Roraima e indígena da etnia Macuxi, já disse que escrevia sobre valores acerca dos quais somente ele “como autor, ator, personagem e própria história, poderia.” Esbell ganhou notoriedade, entre outras coisas, por um texto publicado na Revista Iluminuras, em 2018, no qual se coloca como neto de Makunaima, personagem incontornável do imaginário indígena da região de Circum-Roraima, na área da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Neste artigo, analisaremos este texto, em perspectiva comparada.

PALAVRAS-CHAVE: Jaider Esbell; literatura indígena; Makunaima; Macunaíma


ABSTRACT:

One of the most interesting voices in contemporary Brazil, the writer and painter Jaider Esbell, born in the state of Roraima (Northern Brazil) as a member of the Macuxi indigenous tribe, has already said that he wrote about values that only he “as an author, actor and character with a specific history could write about.” Esbell became famous, among other things, for writing a paper in the Revista Iluminuras, in 2018, in which he claimed to be the grandson of Makunaima, a crucial character in the indigenous peoples´ imaginary at the Circum-Roraima region, within the área of the triple borders (Brazil, Venezuela and the Guyana). Here we will analyze his paper taking on a comparative perspective.

KEYWORDS: Jaider Esbell; Indigenous Literature; Makunaima; Macunaíma


Uma das vozes mais interessantes da cena contemporânea no Brasil, o escritor e artista plástico Jaider Esbell, nascido no Estado de Roraima e indígena da etnia Macuxi, já disse que escrevia sobre valores acerca dos quais somente ele “como autor, ator, personagem e própria história, poderia.”[4] Esbell ganhou notoriedade, entre outras coisas, por um texto publicado na Revista Iluminuras, em 2018, no qual se coloca como neto de Makunaima, personagem incontornável do imaginário indígena da região de Circum-Roraima, na área da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Neste artigo, analisaremos este texto, em perspectiva comparada.

Para melhor situar o leitor sobre as circunstâncias de sua produção artística, começaremos por sintetizar a situação de Roraima, onde vive o autor estudado.

Nas condições sócio-históricas da formação da sociedade no Estado de Roraima, não existe uma manifestação identitário-cultural hegemônica dentro do contexto ainda recente, e sempre renovado, das trocas simbólicas vivenciadas naquele território. Entre outras razões, isso se deve à imigração constante, seja em função da ocupação das terras no início do século XX, seja em função do garimpo em vários momentos daquele mesmo século, seja em função das levas de migrantes estrangeiros (guianenses e venezuelanos preferencialmente).

Exatamente por não haver essa configuração hegemônica de um dado traço cultural, de uma culinária típica, consensual, de manifestações culturais específicas do local; exatamente pela vivência dessa mescla, por haver tantas mudanças no perfil populacional num espaço temporal reduzido, é que se diz ser Roraima “uma terra sem cultura”. Esse bordão, repetido inúmeras vezes até mesmo por pessoas que defendem uma imagem específica da cultura local, tem servido tanto ao propósito de tentativas de intelectuais, poetas e escritores de emprestar uma imagem para a cultura local, como para o descaso de dirigentes e órgãos públicos no fomento à cultura e artesanatos locais. E é aí que a permanência de escritores e obras tem sido fundamental para que o quadro de crença no vazio, na inexistência, se modifique.

Todavia, como vivemos em uma sociedade dualista, a toda perspectiva negativa equivale uma positiva. Nesse caso, o equivalente mais próximo de uma ideia supostamente positiva deste alegado “vazio cultural” acaba sendo o da referência imediata mais à mão: a cor local. Ela é que, em última instância, tem conferido às literaturas emergentes nas periferias, seja pelo meio de seu evidente exotismo, seja pela força da pressão social que exerce, um quê de identidade própria, sempre polêmica e sempre em crise.

A literatura de Roraima, longe de ser um sistema constituído (a modos de Antonio Candido), vive ainda hoje seus dias de manifestações literárias. Estado da Região Amazônica, Roraima é/foi, ao longo de sua história, um dos menos densamente habitados, um dos mais densamente povoados por retirantes da mais variada espécie que buscam seu sustento e, por que não, seu lugar ao sol. Lugar de índios, fazendeiros (pecuária e agricultura), garimpeiros e migrantes, muitos migrantes, o estado teve sua população aumentada em mais de cem por cento, em determinadas épocas, fruto da imensa quantidades de migrantes que lá vieram ter em função dos ciclos econômicos da região. A abertura de novas fronteiras pecuária e agrícola, o ciclo gomífero (látex), a extração de todo tipo de minério e pedras preciosas, entre outros, foram os principais responsáveis pelos diversos booms populacionais que alteraram definitivamente a arquitetura demográfica do Estado.

Emprenhado no imaginário de muitos, Roraima tem sido, desde sempre, do ponto de vista da representação litero-artística que se faz deste/neste estado, uma colcha discursiva de discursos migrantes e nativos que gravitam entre o insólito lendário-mítico e as tentativas integracionistas mais descaradamente destrutivas de sua fauna-flora.

Aliás, em função desta última perspectiva discursiva, quase sempre de origem institucional e mercadológica, que alega pretender “desenvolver” economicamente o estado, boa parte de sua intelectualidade ocupou-se nas duas ou três últimas décadas da tentativa de preservar o que ainda há de cultura nativa, assim como da fauna e flora locais. De certo modo, essa preocupação também tem sido responsável pela revalorização da cor local, a despeito da distância entre nossa era contemporânea e o Romantismo, de modo a colocar esta cor local na agenda dos que produzem arte e literatura em Roraima, apesar da incipiência dos meios de veiculação, difusão e comercialização dos bens de cultura produzidos pelos artistas locais, assim como da ausência de instituições críticas (a primeira universidade e o primeiro curso de Letras do estado têm apenas 30 anos).

Por outro lado, a atualização tecnológica, em função da expansão da internet e da telefonia móvel pela Amazônia, permitiu a circulação virtual e ampliou a visibilidade de textos e obras aqui produzidas, bem como permitiu que, de modo bastante aleatório, os artistas e escritores locais buscassem atualização na rede mundial de computadores, assumissem discursos mais universalistas e, em alguns casos, superassem o discurso regionalista. Isso, no entanto, não aplacou o desejo de ser o criador de uma representação identitária para Roraima de boa parte daqueles que por lá produzem literatura.

Em alguns casos esse desejo mescla as tendências mais variadas: a origem indígena e seu perspectivismo, a academia e sua produção crítica, o conhecimento do mundo contemporâneo e da história passada, o discurso do politicamente correto e as correntes minoritárias da pós-modernidade, a mitologia e outros mais, e gera autores e obras cuja natureza, de difícil definição, extrapola o contexto da produção atual, ao mesmo tempo em que o representa.

Neste contexto, a produção artística de Jaider Esbell se insere, ao mesmo tempo, como a de um artista que conhece a chamada “cultura ocidental” – tendo tido, inclusive, uma formação universitária (formou-se em Geografia) – e a cultura indígena local. Assim, Esbell reflete até sobre o que significa ele escrever para um periódico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “(...) a composição deste texto no formato de publicação como ciência é um caminho para atender demandas específicas da arte indígena contemporânea a partir de uma agência maior em abordar todas as questões relacionadas direta e indiretamente com a cena Brasil da atualidade (Esbell, 2013, p. 39).”

Veja-se que, na citação abaixo, que serve de abertura para seu manifesto pessoal, Esbell usa uma série de termos conceituais “ocidentais”, por assim dizer:

Eu aconteço, artisticamente falando, acredito, dentro de um processo que nos convida a pensar criticamente a decolonização, a apropriação cultural, o cristianismo, o monoteísmo, a monocultura e todos os dilemas do existir globalizado. Ou não? O meu surgimento vem junto com a expectativa que se cria em volta de outro termo, no Brasil ao menos, a arte indígena contemporânea. Não a moderna, a passada e extinta, nem a por vir, mas a deste início do século XXI. (Esbell, 2018)

Termos como “decolonização”, “apropriação cultural”, “cristianismo”, “monoteísmo”, além de “dilemas do existir globalizado” se, por um lado, expressam uma relação intercultural intensa com a terminologia acadêmica deste século, por outro lado, alinhados ao termo “arte indígena contemporânea”, explicada como “Não a moderna, a passada e extinta, nem a por vir, mas a deste início do século XXI”, indicam a existência de um fenômeno relativamente recente que, sobretudo, aparece com o traço discursivo da dúvida ou da ausência de certezas mais plenas: “Ou não?”

É exatamente esse deslizamento do fazer literário para o discurso acadêmico, essa apropriação do texto ensaístico que coloca Esbell num patamar diferente daqueles que, como ele, têm uma origem a defender. Essa, consciência, esse dizer-se diferenciado em relação aos seus pares é visível quando observamos a escolha de filiação que faz para sintetizar sua relação interculturas: neto de Macunaíma/Makunaima.

Esbell não parece também estar de acordo com as vertentes mais radicais da cor local, aquelas que pregam o descarte automático de tudo o que não tenha sua origem absoluta no local mesmo no qual e do qual se fala. Ao contrário, talvez também em função de sua formação universitária, inclui em seu cardápio os empréstimos: “Empréstimos temos que fazer a todo o momento. Empréstimos que já vêm de longe descaracterizando as coisas, as energias e não queiramos nós ter a essência das coisas pois estas coisas não estão para nós a menos que elas mesmas nos sucedam.” (Esbell, 2018, p. 12) Não é por acaso, então, que ele afirma: “(...) tanto meu avô Makunaima quanto eu mesmo, parte direta dele, somos artistas da transformação (Esbell, 2018, p. 11).” Observe-se que empréstimo não significa necessariamente mais do mesmo, se o artista transforma em outra coisa o que pegou emprestado. Mesmo quando usa termos conceituais universitários contemporâneos, Esbell também aponta para a inadequação ou insuficiência deles, para tratarem de questões indígenas, inclusive apontando caminhos: “Sem adentrar as portas das cosmovisões dos povos originários não há como discutir decolonização” (p. 13). Veja-se aí também o eco de uma vertente da Antropologia contemporânea, que vem considerando os sentidos estruturados no discurso indígena não mais como apenas “mitos”, “estórias” ou outras coisas assemelhadas, mas como uma espécie de Metafísica (Veja-se, por exemplo, o livro de Eduardo Viveiros de Castro Metafísicas canibais). Isto significa que não seria suficiente, a partir de uma metafísica ocidental, tentar entender o mundo indígena: adentrar as portas das cosmovisões dos povos originários significaria tentar entender aquele mundo nos termos em que ele é entendido pelos povos que o habitam.

Esbell parece apresentar-se como neto de Makunaima travestido de Macunaíma, por astúcia e desejo próprios, em um esquema de filiações que inclui Macunaíma, filho de Mário de Andrade e de suas leituras de Theodor Koch-Grünberg, e Makunaima, filho e pai mítico de seu povo, os Pemon[5].

Essa familiaridade, essa ascendência, parecem lhe conferir, como conferiram ao avô, o direito de livre trânsito entre culturas. Isso, e um pouco de misticismo e mistificação. Não se trata de mistificação no sentido pejorativo, mas de um colocar-se na condição mística a partir da linguagem, a partir da forma como, narrando, se elabora o texto, inserindo-o e ao seu enunciador em mistérios:

Adianto que não ando só, que não falo só, que não apareço só. Faço saber que toda a visualidade que me comporta, todas as pistas já expostas do meu existir são meramente um passo para mais mistérios. Somos por nós mesmos o poço de todos os mistérios. Faço saber ainda que não temos definição, que viemos de um tempo contínuo, sem estacionar. Antes, faço saber que buscamos os sentidos mais abstratos, tratamos de outros tratos bem firmes nessa passagem. (Esbell, 2018, p.11)

O transformismo que opera sobre si e sua obra abre espaço para esse outro dentro de si: o neto de Makunaima. Figuração de um existir artístico anterior mesmo a sua existência, sua ancestralidade é sua forma de ser trezentos/trezentos e cinquenta, como Mário de Andrade. E essa ancestralidade abrange não apenas o seu ser sócio-histórico, mas o seu fazer artístico. Esse fazer, no entanto, como ele bem adverte, não é apenas uma sequência direta, cartesiana, genética e linear das tradições de seu povo. Trata-se de mais do que isso, ou seja, de uma espécie de cruzamento de Makunaima com Macunaíma.

É nas palavras/vivências da arte deste Jaider Esbell, artista makuxi contemporâneo, que Makunaima ganha mais do que a vida lendária e literária já concedida por Koch-Grünberg e Mário de Andrade. Esbell, que se intitula neto de Makunaima, no texto manifesto-memória publicado na Revista Iluminuras, revitaliza o herói que, conforme conta, apareceu para ele e o designou como seu herdeiro: “Ele me disse: - É você mesmo. É você que eu esperava para me acompanhar” (Esbell, 2018, p.16). Esse avô Makunaima, mais que herói, é a própria natureza, é deus, é a própria língua/linguagem feito gente, feito ser “incompreendido” que “autoriza” o neto artista “a citá-lo, a reivindicá-lo, a cultivá-lo, vivê-lo, ressuscitá-lo”. Segundo Esbell, Makunaima sabia das implicâncias e implicações do “se lançar na capa do livro do Mário de Andrade”, conforme teria dito numa das “inúmeras conversas de avô e neto”:

Meu filho eu me grudei na capa daquele livro. Dizem que fui raptado, que fui lesado, roubado, injustiçado, que fui traído, enganado. Dizem que fui besta. Não! Fui eu mesmo que quis ir na capa daquele livro. Fui eu que quis acompanhar aqueles homens. Fui eu que quis ir fazer a nossa história. Vi ali todas as chances para a nossa eternidade. Vi ali toda a chance possível para que um dia vocês pudessem estar aqui junto com todos. Agora vocês estão juntos com todos eles e somos de fato uma carência de unidade. Vi vocês no futuro. Vi e me lancei. Me lancei dormente, do transe da força da decisão, da cegueira de lucidez, do coração explodido da grande paixão. Estive na margem de todas as margens, cheguei onde nunca antes nenhum de nós esteve. Não estive lá por acaso. Fui posto lá para nos trazer até aqui. (Esbell, 2018, p. 16)

Eternizando-se, Makunaima, já transformado em Macunaíma, não sofre, posto que chegando “onde nunca antes nenhum de nós esteve”, deixa de ser ele mesmo para se tornar “uma carência de unidade” com os seus. À margem de todas as margens nosso herói é imune ao tempo, enquanto Makunaima, e ao mesmo tempo materializado como novidade, em Macunaíma.

E, assim, cada episódio que conhecemos de Makunaima a Macunaíma, do lendário indígena recolhido pelo alemão Koch-Grünberg aos discursos ainda circulantes em comunidades indígenas da região do circum-Roraima[6], assim como as peripécias do herói sem nenhum caráter, são agora narrados sob a perspectiva do próprio Makunaima, avô do artista Jaider, anterior e posterior ao Macunaíma de Mário, tão real como o ar que respiramos ou uma estrela no céu (que bem pode ser a Ursa Maior). Dessa forma, as histórias do neto makuxi são “reais” porque ele compartilha com o avô o “mesmo sangue, a mesma astúcia, o mesmo caráter”, recebendo dele todas as informações e justificativas, desde a derrubada da Wazak'á até sua fixação em capa de livro:

Quando Makunaima decide estar na capa do livro, sabia que a partir daquele momento sua vida ganharia outra dimensão. Sabia da grandiosidade do ato dessa representação de realidades ainda a vir a se extrapolar. Sabia da importância dos ícones na cultura que havia chegado. Sabia dos limites e da gana daquele povo. Sabia da sua missão e foi. Foi para o livro, foi para o cinema, foi sujeito e entregue para o mundo. Foi por saber, por lucidez, foi por querer. Sabia que estar na capa do livro era estar em um outro ambiente. Sabia que em um mundo carente de deuses e bondades sua imagem estaria sendo associada a algo ainda não vivido mas bem conhecido. Sabia de tudo, sabia de todas as etapas sentidas até seu pleno fazer que é o agora. (Esbell, 2018, p.17)

É no manifesto-memória que a linguagem se pretende arte. Como arte epifânica, anuncia e denuncia, inclusive, questões indígenas, tendo em vista que o Macunaíma estampado na capa do livro de Mário de Andrade não é, nem de longe, esse avô “real” que conta suas intenções ao neto. Sabedor e consciente de seus atos, Makunaima admite ser exposto como Macunaíma “por querer”, com o objetivo maior de defender a causa indígena.

Mas esse vai e vem de Makunaima-Macunaíma no tempo-espaço, além de revelar o caos em que vivem as divindades, sem presente, passado e futuro, nessa simultaneidade de dimensões sem fim, enquanto técnica de produção textual, enquanto proposta literária, já está contida em Mário, antes de estar em Esbell: a desgeografização, a mescla de lendas, mitos e linguagens, tudo, absolutamente tudo, no texto do Macunaíma-livro que precede o manifesto esbelliano, aponta para esse sem-caratismo de uma construção em que a linearidade humana não é possível, ao mesmo tempo em que se realiza enquanto narrativa.

Deus de índios e não índios, assim é o avô de Jaider, uma mescla, ele mesmo, fruto da contaminação sofrida por se permitir fixar na capa do livro? Ou uma divindade antropofágica que pretende salvar seu povo num rito crítico-auto-sacrificial?   

Assim quer parecer, pois é como mártir que ele justifica sua exposição no texto marioandradino:

O endeusamento de Makunaima lhe permite viver ainda mais as amarguras necessárias para o triunfo que virá. O herói sem nenhum caráter estava pronto para abrir os braços bem abertos ao mundo e receber sua chuva de flechas, suas estocadas contínuas e esse projetar nos indígenas por todo o existir. Nos preservou se entregando, se fazendo caça ao caçador. O surgimento, o encantamento, a máxima sucção e o abandono de meu avô como um inútil trapaceiro chega ao fim aparentemente. (Esbell, 2018)

Esse fim aparente de Macunaíma faz referência ao fim do herói e seu destino de “viver o brilho inútil das estrelas”. Sua abnegada aceitação de se deixar expor e sofrer (de braços abertos, flechas e estocadas, como Cristo), vai na contramão do herói que Mário nos deu a conhecer e mesmo do lendário de Koch-Grünberg, cujos traços característicos apontam para uma “tentativa imperativa de extrair-impondo por força tal identidade”. Tanto uma narrativa como outra, conforme denuncia Jaider Esbell, são “essa a proposta enviesada, que tanto se festejou, esse fracasso de sentimento que é a cara falida da cultura brasileira”. Ambas são “um fracasso humano, uma leitura mundana sem profundidade”.

Aqui podemos pensar na relação entre o Macunaíma trickster de Mário de Andrade, e o Makunaima mítico (avô de Jaider) como complementares entre si. Sobre esta questão, os estudos de Lúcia Sá (apud Medeiros, 2002 e Sá, 2012) e Fabio Carvalho (2015) permitem definir Macunaíma como trickster levando em conta seu status de herói cultural indígena, sua natureza criativa e seu afastamento de categorias fixas.

Nesse sentido, enquanto um (Macunaíma) denuncia um processo de redimensionamento crítico do universo da linguagem (similar ao da desgeografização dos espaços) como um processo criativo-narrativo-cultural, no qual a própria língua assume características e caracteres diferentes, tornando-se pantanosa/movediça, o outro (Makunaima), assume ares messiânicos e profetiza ao seu neto ficcional sua ressureição e assujeitamento altruísta aos desígnios dos autores de Macunaíma (Koch-Grünberg/Mário de Andrade), fechando um ciclo infinito de apropriações e determinações que permite a um deglutir o outro e vice-versa.

Macunaíma é fruto de Makunaima, assim como Makunaima é de Macunaíma. Um conhece e evidencia o outro através de narrativas lidas de tal modo e em tal sequência, que a reação do “neto” só poderia existir após a leitura do Macunaíma de Mário, posto que se trata de visível reação ao “sacrifício” do avô. E o avô, por seu turno, se dá em sacrifício consciente, no texto do neto (como se esse “sacrifício” pré-existisse ao texto marioandradino que o tornou conhecido e difundido), esperando, com isso, obter benesses para seu povo, tal como Cristo, ou como faria o Makunaima de Lino Figueroa (2001), escritor venezuelano, indígena da etnia Kamarakoto (pemon), que, tendo estudado fora de seu país e alcançado o status de intelectual, assume “o compromisso de, na qualidade de intelectual e de representante de um povo de consciência tradicional, alimentar o anseio de se instituir como autor indígena, escritor de obras literárias – perante índios e brancos”. (Carvalho, 2015, p. 208). Sobre este, Fábio Carvalho aponta o uso de expedientes e estratégias autorais para conferir ao seu Makunaima en el valle de los kanaimas o estatuto de aprendiz de uma cultura que precisa ser reconhecida e valorizada, a pemon/ Kamarakoto

E, ao assumir uma estratégia que busca positivar de forma unilateral o valor da cultura pemon e a imagem da personagem que a representa e sintetiza, o autor de Makunaima en el valle de los kanaimas altera drasticamente os elementos de sua caracterização, tornando-a adequada aos desígnios de seu projeto autoral, à defesa de uma concepção de cultura que se caracteriza pela pretensão à pureza e à originalidade. (Carvalho, 2015, p. 241)

Ao contrário do herói sábio e altruísta de Jaider Esbell, o Makunaima de Figueroa é um aprendiz da cultura kanaimé que busca o conhecimento e o pertencimento à tradição e aos rituais do seu povo. Para tanto, o escritor venezuelano não atribui a seu herói a natureza ambivalente e o caráter de trickster, presentes no Macunaíma dos narradores indígenas do antropólogo alemão e no Macunaíma de Mário.

Para atingir seu objetivo, no “romance de fatura étnico-pedagógica”, Lino Figueroa realiza “o movimento de cunhagem e fixação de uma imagem limpa, nítida, bem-definida e eminentemente positiva da personagem” (Carvalho, 2015, p. 241). Narrador, Figueroa equipara-se a Mayuluaípu e Akúli, os narradores de Koch-Grünberg, cujas vozes assumem um lugar de fala que é, segundo Carvalho, “propriamente indígena”, herdeiros que são “de uma tradição lendária de circulação oral” (Carvalho, 2015, p. 209).

Nesse lugar de fala ocupado por indígenas detentores do saber oral também está o artista makuxi, mas em Jaider Esbell, Makunaima é também uma espécie de mártir cristão. Como “neto” herdeiro da voz e da representação, Esbell desconstrói a má imagem que a narrativa, sabidamente ficcional, de Mário, bem como a do antropólogo alemão, atribuem a seu avó: “É mostrado seco, mau, do tipo perverso, detentor de péssimas qualidades, mesmo como um reforço à ideia de machismo e patriarcado”. Poderíamos pensar, contudo, que sendo os dois frutos desta linguagem incerta (entre a memória-mito e a ficção desgeograficada), ambos acabam se tornando elementos da linguagem artística, ou, melhor dizendo, efeitos de uma ficção cujas dimensões extrapolam o comum, se pluralizam, explodem o retilíneo e se expandem em todas as direções.

Esbell, ao reivindicar o protagonismo de seu avô pelo sacrifício voluntário em prol de seu povo, também o faz por meio de uma linguagem simbólica, não indígena, elaborada em moldes assemelhados ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que foi publicado em 1928, mesmo ano da publicação de Macunaíma. Jaider é pai de seu avô Makunaima, que se deixou “por lucidez” imolar por Mário, pai de Macunaíma, por sua vez filho de Koch-Grünberg, também lido e discutido por Esbell, que ressuscita o que diz ser o real Makunaima.

Para o Makunaima-mártir, avô do makuxi Jaider, conhecedor de coisas futuras, era intento seu “esse projetar nos indígenas por todo o existir”. Para o Macunaíma de Mário de Andrade, o futuro está lá no céu, com a Ursa Maior, “E se vê de todo o nosso céu, não se vê? Eu a enxerguei do Amazonas a São Paulo” (Moraes, 2001, p. 359)

Assim, Jaider contribui para que o universo marioandradino de Macunaíma, já plural, mas ainda, do ponto de vista temporal, relativamente sequenciado, se torne ainda mais caótico, posto que antes de ser avô de Jaider, Makunaima já era Macunaíma, e, antes mesmo disso, Macunaíma, na voz dos informantes de Theodor Koch-Grünberg, era Makunaima, que se fez Macunaíma para poder ser, para sempre, Makunaima.

Esse jogo de espelhos, típico da prosa de um Jorge Luis Borges, por exemplo, torna o manifesto esbelliano uma peça única, uma vez que ele desliza em direção à ficção, pelo insólito da proposta, adotando um tom discursivo de ensaio teórico, que se utiliza, inclusive, de fatos culturais-antropológicos básicos (“tudo índio, tudo parente”, como já cantava o poeta Eliakin Rufino), mas divertindo-se à moda do Realismo Mágico com o labiríntico trajeto que propõe aos seus leitores, ao trazer à tona o texto de Mário ao mesmo tempo em que atualiza e ressignifica a própria literatura que se propõe indígena em sua estrutura maior.

Referências

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

CARVALHO, Fábio de Almeida. Makunaima/Makunaíma, antes de Macunaíma. Revista Crioula, São Paulo, nº 5, maio de 2009. Publicada em: http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/54943/58591.

_____. Makunaima/Macunaíma: contribuições para o estudo de um herói transcultural. Rio de Janeiro: E-Papers, 2015.

_____. Theodor Koch-Grünberg e a cultura brasileira. Gragoatá, Niterói, n. 41, 2. sem. 2016.

ESBELL, Jaider. Makunaima, o meu avô em mim! In: Revista Iluminuras, Porto Alegre, v. 19, n. 46, p. 11-39, jan/jul, 2018.

FIGUEROA, Lino. Makunaima en el valle de los kanaimas. Venezuela: Editorial Intenso, 2001.

KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Do Roraima ao Orinoco (Observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913). Tradução Cristina Alberts-Franco. São Paulo: UNESP, 2006. V. 1.

MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Correspondência. Mário de Andrade & Manuel Bandeira. 2. ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2001. Coleção Correspondência de Mário de Andrade, vol. 1.

SÁ, Lúcia. Tricksters e mentirosos que abalaram a literatura nacional: as narrativas de Akúli e Mayuluaípu. In: MEDEIROS, S. (Org.) Makunaíma e jurupari: cosmogonias ameríndias. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.245-259.

SANTILLI, Paulo. Povos do Roraima. In: MIRAS (org.). Makunaima grita!: terra indígena Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.

 

Submetido em 10/08/2019

Aceito em 03/12/2019


Notas

[4] http://www.jaideresbell.com.br/site/2019/09/13/makunaima-o-mito-atraves-do-tempo/

[5] Segundo Paulo Santilli, “a designação Pemon abrange os grupos a oeste e a sudoeste, na região: os Kamarakoto, os Arecuna, os Taurepan e os Macuxi, que habitam os vales dos rios Cuyuni, Caroni, Paragua, Uraricoera, Tacutu e Rupununi, compreendendo a área conhecida como Gran Sabana, ao norte a oeste do Monte Roraima, e os campos naturais ou lavrado, ao sul e a sudoeste da cordilheira de Pacaraima.” (SANTILLI, 2009, p. 61). Ver SANTILLI, Paulo. Povos do Roraima. In: MIRAS (org.). Makunaima grita!: terra indígena Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.

[6] Entende-se por Circum-Roraima a região compreendida na área da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, tendo o Monte Roraima como marco geográfico central e onde habitam os povos de língua karib, pemon e kapon.